11.12.07

Última hora


A ASAE decidiu fechar por tempo indeterminado a fábrica de brinquedos do Pai Natal. Às quatro horas da madrugada de ontem, ocorreu a operação Dar nas Vistas, que levou mais de 700 polícias, cães polícias e inspectores de gabardina a uma aldeia perdida da Lapónia.

Além das autoridades terem identificado 14 duendes menores de idade, foram detidos 29 gnomos sem visto de trabalho, oriundos da Turquia, Geórgia e Bielorrússia. O próprio São Nicolau foi acusado de cozinhar bolo-rei com uma colher de pau [que como toda a gente sabe é um atentado às regras de segurança alimentar da União Europeia] e ficou com termo de identidade e residência.

Mary Christmas, a mulher de Santa Claus, ficou detida em prisão preventiva com suspeitas de gerir um discreto bordel de Barbies para lenhadores e condutores de trenó finlandeses. O tribunal decretou que Mary, que em certos meios é conhecida como Madame X, não pode ter direito a fiança.

Entretanto, José Sócrates decidiu abrir um processo disciplinar ao Pai Natal, por ter comentado com um duende infiltrado que o primeiro-ministro português não conseguiria correr, «nem que se esfalfasse todo», a maratona de Ano Novo da Lapónia. O caso já está a ser avaliado pela DREN.

10.12.07

Pretérito perfeito

Por estes dias, Lisboa parece uma obra embargada. Não há luzes de Natal no Rossio, os taipais vanguardistas do Cais da Coluna já pouco disfarçam a inutilidade do Terreiro do Paço, o comércio tradicional recusa abrir portas ao domingo, mesmo que estejamos em período de vendas e as grandes superfícies sejam obrigadas a fechar. Rua Augusta sem mimos. Bairro Alto sem boémios. Nem um grito audível na rua quando o Benfica marca golo.

Pausa, Lisboa em suspenso.

Percorro a rua da Escola Politécnica sem ver vivalma. Ligo para dois ou três amigos, ninguém quer desbravar a urbe. Vou beber um chá, o Cister está fechado. De repente, descubro um tasco que a ASAE ainda não localizou, entro, sento-me, um moscatel. O último fio de luz ilumina o rosto da rapariga que está sentada à minha frente. Não é bonita, mas não consigo desviar os olhos dela. Está mergulhada na penumbra e um clarão de lusco-fusco incendeia-lhe o olho direito. Ela sorri-me, não com os lábios [consigo lá vê-los], mas com pestanas e sobrancelhas.

«Olá Ricardo, lembras-te de mim?»

Susana.
Colega da secundária, na altura uma espécie de cheerleader da turma. Gira, cheia de convicções, um terramoto de 16 anos. Agora aqui, à espera de coisa nenhuma. Os anos arredondaram-lhe o corpo mas preservaram-lhe a luminosidade do esgar. Estava na mesma. E isso significa que não se aparentava com nenhuma imagem que eu pudesse guardar do passado.

Desfiámos meia dúzia de memórias, pedi outro moscatel e ela acompanhou-me. Estava a trabalhar na cimeira, agora vive em Bruxelas, trabalha para a União Europeia. Contei-lhe das pessoas que ia vendo e das que nunca tornei a pôr olho em cima, queixei-me da cidade estar em ruínas e de nenhuma outra capital guardar alma de marinhagem.

Despedimo-nos com trocas de e-mail e promessa de nos mantermos em contacto. E, no exacto momento em que saímos para a rua, acenderam-se, muito embora tivessem forma de laçarotes e fossem de um gosto duvidoso, duas filas inteirinhas de luzes de Natal.

5.12.07

Sobre a bruma


1.
Dou por mim a atravessar a praça da Figueira e percebo que não se vê o outro lado da rua. Sumiu toda a gente, a puta anã, as colegas desta, os polícias da ronda, os taxistas que costumam adormecer na praça. Há um silêncio esmagador em Lisboa desde que esta névoa fenomenal se abateu sobre a cidade. Metrópole sem contornos, desfocada, vazia de gente e repleta de vultos. Dou por mim a pensar que isto não é nada de novo. Uso óculos, caramba. Sem eles, Lisboa é névoa constante.

2.
A minha janela na América oferece moldura sobre urbanidade em frente, grande arquitectura à esquerda, desafogo verde à direita, rio atrás. Mas hoje subi arranha-céus acima e tudo o que vi na pintura foi bruma branca. Ahh... Estou nas nuvens.

3.
Quando estava em Maputo, senti exactamente isto. Também em Londres, uma noite há uns anos. E em Sintra, este fim de semana. A realidade, exterior a nós, prega partidas e obriga a fazer testes. Agora estás sem luz em Moçambique, porque houve um apagão. Sem chapéu de chuva em noite de copioso dilúvio londrino, sem casaco no monte da Lua. Sem ver um palmo à frente do nariz nesta cidade encantada. Avanças e superas-te? Ou escondes-te e resguardas-te?

4.
Venda-me os olhos. Dá-me a mão. Anda.

5.
Como foi acontecer isto? Perdi-me na névoa [terei sido engolido?], deixei de saber onde estava, mergulhei de uma vez por todas na cal etérea das nuvens. Outono em Lisboa, que maravilha. Três da manhã, bem bom. Não vejo nada. E no entanto sinto tudo.

11.11.07

This is Maputo


O avião atrasou-se. Eu vinha de Niassa e devia ter chegado ao Maputo ontem mesmo, dia 10, pelas 23h30. Mas, de Lugenda à antiga Lourenço Marques, avioneta fazia paragem em todas as estações e apeadeiros. Pemba, Nampula e cosmopolitismo uma hora depois do previsto, já dia 11, meia hora depois da cinderela se ter transformado em abóbora.
Era feriado e sábado à noite, de qualquer maneira. Primeiro, um táxi para a Feira Popular, comer camarão grelhado, admirar carrocel e roda gigante, conversa boa com duas amigas mais o meu companheiro de vagem.
Três laurentinas fresquinhas depois, comecei a interrogar-me porque motivo o rádio do restaurante tocava mais alto que a grafonola dos carrinhos de choque.
«Bem», disse dona Natércia, «o Maputo faz hoje 120 anos que foi declarado cidade. Tem festa grande na Praça da Independência e estão a transmitir tudo em directo na rádio». Ok, queremos a conta e seguimos para o fim do colonialismo.
Festa rija. Praça cheia com uma claríssima escuridão. Quatro brancos na paisagem, nem mais um. Gente a dançar empoleirada nas árvores, muito maputense a meter conversa, e o raio da laurentina a vir parar-me às mãos - uma, outra, tanta.
À minha volta, só via rodar garrafão de tinto, cigarro de sorriso, mulata de braço em braço. E cantoria de braço levantado, viva o Maputo viva, abraços e amigos num instantinho de sempre, rodas de dançarina, corpos deitados no chão, o dia a raiar.
Tive que correr num foge-foge. Novo voo às 6h30, agora para Bazaruto, e o tempo a escorrer-me dos dedos, não queria, não podia ir embora.
Saí sim, teve que ser. Mas volto já num instantinho e sei com certezas absolutas que hei-de ter saudades para sempre. É estranho. Pensava que ia estranhar urbanidade em África, imaginava magia do continente com exclusividade no mato e na praia.
Mas a minha renitência com o Maputo está como o açúcar para o chá: dissolve-se.

19.10.07

Na diáspora

A noite de ontem foi B.Leza. B.Leza no Music Box, que o velho convento encerrou mesmo portas e o melhor clube lisboeta de música africana funciona agora em formato itinerante. Seja, desde que haja festa.

Houve sim, festa grande.

Muita gente conhecida debaixo da ponte do Cais Sodré. Músicos tantos, jornalistas mais, dançantes imensos, tantos.

Entrei de braço dado com duas damas bonitas, Sophy e Suzana, dancei africanidade até ser tão tarde que já era cedo. Não fui o único. À volta havia bater de ancas ao ritmo da morna, sôdade, sôdade, Lisboa a crioular-se outra vez.

O B. Leza fechou portas mas resiste na diáspora. Volta depressa.

Photolog

Aos meus amigos não lhes basta fotografar o mundo. Bastos puros, também querem editar trabalho com as regras deles. Fazem muito bem.

A mim resta-me a recomendação e os trabalhos conjuntos.

Vão lá, vão espreitar os blogs fotográficos dos melhores bate-chapas aqui da praça: Jordi Burch e Joaquim Gromicho

11.10.07

Âmbar


Ela ali, dois bancos à frente de mim no eléctrico, em viagem de jornalistas por Praga. Ali, charme e glamour, virada para trás a piscar-me o olho, depois a conversar, namoriscar palavras e afagos, sussurrar boémia ao ouvido. Romance de Verão depois dos 30.

- Sou a Amber,
jornalista de Nova Iorque, bela e inteligente, ousada, meio louca, muito cool.

- És de Portugal. Explica-me lá como é que vocês organizam um campeonato da Europa de futebol, perdem a final com a Grécia e depois elegem um primeiro-ministro chamado Sócrates?

Gargalhadas durante uma semana. Fugir dos outros para andar de carrinhos de choque, comprar uma garrafa de champagne e bebê-la no castelo de Praga com céu estrelado, preferir privacidade de pensão de três pulgas às cinco estrelas do resto da comitiva.

Mas agora só sobra o advento da internet e dos sms, mas um Atlântico inteiro de distância.

Quando inventam o raio do teletransporte?

6.10.07

A banda


Santiago de Chile, 2006


.

3.10.07

O anjo da guarda

Era Maio e eu tinha perdido o meu Moleskine. Numa noite de copos, claro, e à saída da casa de amigos no Princípe Real. Entrei num táxi e encostei a cabeça para trás, as luzes de Lisboa a rodopiarem a média velocidade, zonzo, gozo, giroflé giroflá. Quando cheguei à América paguei os seis euros do costume mas deixei o caderno em cima do banco. Pensei que nunca voltasse a ver o meu Moleskine. Era Maio, início do mês.

No Moleskine escrevo sempre com caneta preta. E isso significa que não estou a escrever para mais ninguém. É só para mim, são páginas de anotações do meu próprio diário, impartilháveis, emoções e desgostos e alegrias e coisas assim.

Setembro, pelo Porto outra vez, e toca o telemóvel: «Olá, o meu nome é José António Castel-Branco e encontrei um caderno seu na rua. Tinha o número de telefone escrito. Não li mais nada. Posso devolvê-lo quando quiser.» Sexta-feira, quando voltar a Lisboa. Às cinco em frente da Brasileira do Chiado, está combinado.

Sexta feira de Setembro, cinco menos cinco, telemóvel a tocar outra vez: «Fala António José Castel-Branco. Já aqui estou em frente à Brasileira. Vai-me reconhecer logo, tenho uma camisa aos quadrados verdes e uma guitarra na mão.» Ok, estou a chegar. E estava.

António José Castel-Branco estava a tocar Let it Be para os clientes da esplanada da Brasileira. Vi-o logo que saí da boca de metro no Chiado, a tal camisa, as calças rasgadas, um boné vermelho da Vodafone na cabeça, a barba mal amanhada e os olhos bondosos. Aproximei-me e esperei que acabasse a música. Depois ele confirmou a minha identidade, abriu o saco da viola e retirou o Moleskine preto, o meu diário de bordo perdido há quatro meses e finalmente reencontrado.

Perguntei-lhe em que raio de geografia se tinha dado tal achamento e ele respondeu que o tinha encontrado num caixote de lixo do Chiado, quando andava à procura de comida. António José Castel-Branco revelou-se sem-abrigo. E boa alma, também.

«Sabe», disse-me ele, «pensei rasgar as páginas escritas e aproveitar o caderno para as minhas canções. Mas depois achei que não se pode roubar a poesia a um poeta.» Então afinal sempre leu o que tinha escrito? «Não.» «Bem, na verdade li um pouquinho.» «Para ser absolutamente sincero devorei tudo. E gostei muito.» Obrigado.

Perguntei-lhe se queria uma cerveja. Não queria. Quer vir lanchar? Não quis. Então vou andando, obrigado por ter devolvido o meu tesouro. Comecei a andar. Quando dobrei a esquina, virei-me para trás e já não o vi, parecia ter-se esfumado Chiado acima.

Abri o caderno para matar saudades de mim mesmo, em registo de palavras sem público. Encontrei lá dentro um poema, com data e assinatura de António José Castel-Branco, rimas sobre Lisboa, a noite e os vagabundos.

Não fosse ter na lista de contactos o número de um sem abrigo com nome fidalgo e telemóvel, e ainda hoje estaria a pensar se não teria sido visitado pelo fantasma de Fernando Pessoa.

21.8.07

East is East


Há um ano estava aqui, em Halong Bay, a dar mergulhos no mar da China, fazer canoagem em grutas aquáticas, trekking em Puc Huong, reportagens no meio de nenhures. Há um ano, no Vietname, havia bandeiras espalhadas por toda a parte, eu estava a sentir-me repórter como nunca antes, a curtir viagem com história e, agora, memória.

Cheguei há dias da Europa de Leste. Este ano como no passado, o rumo apontou ao Oriente, onde o Sol nasce. Que continue assim.

19.7.07

Dá-lhe gás


Na estação de serviço de Vila Velha do Rodão, a meio caminho entre Abrantes e Castelo Branco, vendem-se todo o tipo de improbabilidades. Um mapa dos arredores de Sintra, por exemplo.

O caso não seria estranho, não fosse o facto da mesma estação de serviço não ter qualquer mapa da Beira Baixa e de não se conseguir encontrar um mapa dos subúrbios de Sintra em nenhuma estação de serviço dos subúrbios de Sintra.

Para que raio precisa um habitante de Vila Velha do Rodão de saber onde fica Pexiligais, a Tapada das Mercês ou a Serra das Minas?

2.7.07

24 hour party people


Quem por estes dias se detenha diante de qualquer parede do Bairro Alto, do Cais do Sodré ou de Santos, rapidamente constata a febre de festa que anda a assolar a cidade. Há festivais de Verão em barda, os melhores DJ's do mundo, beach parties, pool parties, festas trance, electro, punk, pimba, 80's, drum&bass, r&b, cidade&arredores. Há festa na aldeia.

Ninguém escapa ao contágio. Pessoalmente, quero ir ao Festival de Músicas do Mundo, ver Underworld e Scissor Sisters, Gotan Project e não digo que não às festas de São Lourenço em Tourém, concelho de Montalegre, Trás os Montes. A maior parte dos meus amigos também tem destinos definidos. E os conhecidos e os que nunca vi em parte nenhuma. Chega o Verão e Portugal precisa urgentemente de se embriagar.

O fenómeno não deixa de me arrepiar os pêlos. Estamos em plena crise económica, ninguém consegue atravessar a Baixa lisboeta sem que lhe cravem dois ou três ou oito cigarros num percurso de dez minutos [a propósito, os pedidos são cada vez mais exigência. No outro dia disse a um tipo «não» e ele perguntou «mas não porquê», outra vez respondi a um rapaz «só tenho um» e ele retorquiu com «também é só um que eu quero»], as pessoas andam mais agressivas, mais enrezinadas e mais ressabiadas. Mas chegou a altura das festas e não há quem não se sinta obrigado a cumprir o mais pós-moderno dos rituais portugueses. Nasceu na última década uma Partyland. Mas tenho dúvidas se estamos na terra da party people.



Tenho normalmente essa sensação às sextas e sábados à noite, no Bairro Alto [evito cada vez mais incursões a estes dias]. Observem-se mitras, betos, nherfs e pseudointelectuais de esquerda para constatar o facto. Passam grande parte da semana isolados e chega o fim de semana e decidem: «Hoje vou divertir-me!» Então invadem o bairro, anestesiam-se com álcool ou substâncias psicotrópicas para que, da meia-noite às seis [sete, oito] da manhã se divirtam. O problema é que decidem previamente a sua diversão, planeiam-na num horário e num formato pré-definido. É a morte da espontaneidade, com ilusão de grande festa.

Não tenho nada contra noites bem regadas ou aditivas. Nem quero ser moralista ao ponto de pensar que quem sai à sexta e sábado é obrigatoriamente assim. Só me espanta a febre de party-goers que se assumem como tal nesta cidade, quando ainda há uns dias vi um tipo meter-se com uma série de gente no Bairro, com tiradas realmente cómicas e geniais, de uma forma descomplexada, como se estivesse em festaconstante. Reparei que a maior parte das pessoas com quem ele se metia o ignoravam ou lhe respondiam com a típica sobranceria lisboeta.

Ninguém percebeu que esse tipo estava a oferecer passaportes para a grande festa. Mas era uma festa espontânea, verdadeira, fora de formato.

8.6.07

Pura vida

Passa uma semana de calor tórrido e chega feriado com céu de ameaça. Pode chover, pode ficar nublado, pode chegar vento, pode vir frio.

Mas não ficou.

Bandeira verde na praia da Mata é presente raro. Sintrense está habituado a mares agitados, brisa que se torna ventania num instante, instantinho. Na minha praia de sempre, a Adraga, verde foi visão de bandeira por duas ou três vezes - não num Verão, numa vida inteira. E ontem tive ondulação de senhoras. Mergulhar, mergulhar.

Veio Lisboa toda. Parecia saída da noite anterior, os mesmos rostos que foram ao Soft e ao Lux mas agora espojados na areia. Vai caiprinha? Vai. Caracóis? Sim. Melhor irmos jantar. Está bem.

Passei o sábado passado no Sado, num galeão com amigos [era a despedida de solteiro do Ric, que, inconscientemente, me convidou para padrinho. Está louco] a ver golfinhos, dar mergulhos, beber vodkas ao fim da tarde. Depois fomos comer canivetes a Setúbal, ameijoa, berbigão. Não havia choco frito, mas ahhhhhh, é tão bom ter Verão na bagagem.

Ontem mais fiesta, sábado mais praia. Se vier mariscada, melhor. Cerveja, parece-me bem. Dias longos, bonitos, e este ano arrisco-me a ir mais vezes à praia do que nos últimos cinco.

Os costa-riquenhos defendem a teoria da pura vida. Verão constante, verão andante, verão é estado de espírito para manter o ano todo. Seja, já cá estou.

6.6.07

Quase em casa


Junho tem alma de Dezembro. Natal com calor, hemisfério trocado, altura de regressos e congressos entre amigos com história. É reedição de um certo season spirit, agora mais solto, veranil.

A foto é do fim do ano, raiar do dia, alvorada em moca. Festa aveirense até aguentar e estes são os últimos resistentes. Que agora regressam: estão quase em casa. Vem um de Angola, vem. Outro de Espanha, vem. Menina chega da Índia, vem. Estudante volta a Lisboa, vem. Vem todo o mundo e reencontro é na América. Vem festa, vem.

4.6.07

Hell was here

Mr. T. não se costuma meter com ninguém, é um tipo pacato, sereno. Cravo-lhe às vezes mortalhas, outras vezes cerveja e ele nunca recusa. Trabalha no bairro, num bar do circuito boémio. É boa onda, Mr. T.

Ontem à noite Mr. T. foi espancado e partiram-lhe o bar todo. Eram três agressores e usavam blusões dos Hell's Angels. Um disse-lhe isso, «sou dos Hell's Angels», ele respondeu «boa, eu sou do Benfica», e então espancaram-no. Tinha a cara feita num bolo, Mr. T.

A polícia veio, não levou ninguém, parecia ter medo. Os tipos que deram a sova a Mr. T. - um tuga, dois californianos - revelaram em surdina que havia uma concentração deste grupo em Portugal, por estes dias. Mais de 1500 associados dos Hell's Angels chegaram de todo o mundo a Vila Franca de Xira na passada sexta-feira, em segredo, sem ninguém dar por eles. E ontem deram cabo de Mr. T.

Um dos meus escritores preferidos chama-se Hunter S. Thompson [se alguém viu o filme «Delírio em Las Vegas» saiba que é baseado num livro biográfico dele e que o tipo é a personificação das duas principais personagens. Thompson foi o fundador do Gonzo Journalism e era um alucinado como já não se fazem]e passou um ano em reportagem com os Angels. Andou com o grupo de motociclistas na estrada, assistiu a alguns dos crimes que os tornaram famosos, acabou espancado pelo colectivo de São Francisco.

Sexta feira passada, o inferno chegou a Lisboa e eu só me apercebi disso quando espancaram Mr. T. É certo que eles combinaram o encontro em surdina, mas é igualmente verdade que estão cá. A imprensa não noticiou, a polícia não se apercebeu, nada!

Já estão de partida - mas, fuck, como raio é que eu não fiz uma reportagem com eles?

29.5.07

Dar uma geral

Em Portugal trabalha-se mal. Um tipo que seja realmente competente no que faça não é recompensado por isso e um tipo que seja realmente incompetente no que faça não é castigado por isso. Seja no sector público ou em empresas privadas. A gestão de recursos humanos é, neste país, uma piada. Normalmente quem sobe na vida é porque é amigo do chefe, cão de fila ou yes-man. Há excepções, mas esta é a regra.

Em Portugal, muitas das pessoas que ocupam cargos de liderança receiam tanto serem ultrapassadas pelas pessoas mais novas [muitas vezes mais bem preparadas para as exigências profissionais] que muitas vezes bloqueiam o acesso às decisões a quem é bom. Há uma cultura do topo para as bases, quando a produtividade subiria se o processo ocorresse ao contrário. Obviamente.

Em Portugal, os chefes não partilham muitas vezes informação sobre o trabalho a desenvolver. Ouvem-se frases como: «ninguém te paga para pensar», «isso não é da tua competência», «reduz-te à tua insignificância». Ora, partilha também significa partilha de soluções, mas isso é vantagem que não se quer ver.

Em Portugal, não se elogia nem critica o trabalho dos outros, «mete-te mas é na tua vidinha». A excepção é quando aparece um tipo muito bom e que dá muito nas vistas. Aí, as pessoas falam, mas normalmente o sujeito é mais vezes alvo de inveja do que serve de exemplo. Trabalha-se mal em Portugal.

Em Portugal, há uma geração mil euros. Os que nasceram nos anos 70 só raras vezes conseguem ultrapassar esta fasquia – suficientemente modesta para manter condições de vida medíocres, suficientemente acima da média para ninguém criar ondas. É espiral sem fim, viver com mil euros. Até porque não há perspectiva de mudança.

Em Portugal, investiu-se nos baixos salários durante a segunda metade da década de oitenta e primeira de noventa como estratégia de desenvolvimento económico. Mas caiu o muro, veio a globalização e o país ainda não se soube reinventar. Um ministro convida empresários chineses a investirem em Portugal, porque os salários são baixos. O PM aumenta os impostos aos solteiros, aos deficientes e aos que querem morar sozinhos, para ordenar em rebanho de estratégia familiar [e remediada] a sociedade portuguesa. Não há formação profissional, não há aulas para trabalhadores estudantes, não há nada.

Em Portugal trabalha-se mal. E é por isso que eu adiro à greve geral de 30 de Maio. Não só por mim, não só pelos estagiários que enchem as redacções dos jornais a custo zero, não só pelas pessoas que conheço que se esfalfam como jornalistas e ganham menos do que um incompentente que não sai da secretária.

Faço greve porque em Portugal se trabalha mal. Mal demais.

24.5.07

Caos

Tinha directora, já não tenho. Fui nomeado para um prémio de jornalismo, não ganhei. O portátil deu o berro. Não comprei uns óculos novos. Não entreguei o IRS. Tenho que actualizar a carteira de jornalista. É por tudo isto que não escrevo há tanto tempo.

Aiiiiiiiiii

Mas acontecem coisas boas pelo meio. Baloiços e casamentos de amigos e tal.

I'll be back soon with another cartoon.

11.5.07

TOMBA LA LÃO

Mesmo em frente à América há um parque infantil com três cavalinhos que sobem e descem consoante o atrito que se lhes imprime, mais um complexo castelo de madeira com cordas para escalar e três escorregas [um túnel, um tubogan e uma passadeira normal, descendente, metálica] para ensaiar a evasão.

Nunca lá vi uma única criança.

O facto pode ser explicado pelo cada vez mais óbvio envelhecimento do bairro de Alvalade, pelas novas regras sociais em que os putos já não brincam na rua mas sim fechados em casa, diante do computador, ou pela simples constatação de que há três parques infantis numa área de 200 metros e aquele é sem dúvida o menos espectacular [não tem, por exemplo, bebedouro de água, sobe-e-desce ou baloiços]. Seja como for está constantemente vazio. Ninguém, um deserto de infância.

No entanto ontem, às quatro e meia da manhã, o parque infantil escangalhou-se em gargalhadas. Havia dois vultos no cavalinho, no tubogan, a escalar o castelo. Riso, festa, grande moca.

Quem disse que não existem crianças de 30 anos?

7.5.07

A menina dança?

Dança.

Muito bem.

Num palco de caixa de música, noutro sobre o Tejo, a menina dança com gestos de cantiga de embalar, esgar de baile de fim de verão, sorriso de cabaret. A menina dança muito bem. E eu gosto.

30.4.07

Dia não

Raios partam aquelas pessoas que insistem em ler o extracto da conta em frente à caixa multibanco, os que passam horas à espera numa fila para percorrer a pé o túnel do Marquês, os chico-espertos que fazem sinal de luzes ao carro em frente, quando este está a ultrapassar um camião numa autoestrada, mas são capazes de andar a 20 quilómetros/hora na faixa de aceleração se houver um acidente [nem é preciso tanto, basta uma luz de ambulância ou reboque] em sentido contrário.

Raios partam todos os senhores doutores, engenheiros e arquitectos que não o são e insistem em legitimar-se com um título alheio e impróprio. Raios parta a velha e pequenina geração que insiste na mesquinhez de barrar aos mais novos o acesso aos cargos de decisão e raios partam as novas gerações de pseudo-intelectuais que torcem o nariz à pureza em nome da postura, que se alheiam da «gentinha» e dos seus problemas, que são capazes de olhar para o seu próximo como se ele não existisse - antes para um ponto vago de um horizonte anónimo.

Raios partam as pontes a cair, as cegonhas que embatem em postes e rebentam com metade da rede electrica nacional, raios parta o protocolo de Quioto que nunca mais avança e os terroristas islâmicos e os demagogos americanos e esta mania portuguesa de nos abstrairmos do assunto, como se nada nos disesse respeito.

Esta manhã, quando acordei, estava de azia e com os pés de fora. Rios partam.

27.4.07

Miss D. vai casar

Sentimo-nos um pouco estranhos quando alguém com quem já tivemos uma relação nos anuncia que se vai casar. Miss D. vai casar este domingo. Anunciou-me o facto há já alguns meses, com a maior naturalidade do mundo, e eu aceitei a notícia no mesmo registo. Afinal, tinham passado anos desde que nos enrolámos pela última vez. E não havia de facto qualquer motivo para assim não ser: sempre ficámos amigos [contra todas as probabilidades, verdade seja dita], e, anos mais tarde, quando conheci o homem que este domingo a vai levar ao altar, achei que era um tipo porreiro e calado - com o tempo confirmei a primeira qualidade e ele foi ganhando confiança para alterar a segunda.

Miss D. e eu nunca namorámos, antes envolvemo-nos. Namorei sim com Miss H., que há dias me dizia qualquer coisa como «devia existir uma lei que proibisse os ex-namorados de casar.» Bem, Miss D. vai casar este domingo mas, como nunca foi oficialmente minha namorada, a lei não se aplica. Consigo até sentir-me feliz por ela. Vou aliás estar presente no casamento, no copo de água e até aposto que me vou divertir bastante. Mas não deixo de sentir algo estranho.

Sei que não quero casar, evito os relacionamentos e privilegio os envolvimentos, não me sobram restos da atracção que levou a que um dia eu e Miss D. estivessemos juntos. Mas isto é pura razão, porque emocionalmente dou por mim a pensar em imensos «whatifs». E se tivesse sido eu. E se tivesse sido ela. E se tivessemos sido nós.

Não somos, nunca fomos, nem seremos. Sei-o perfeitamente. Estou feliz por ela, estou feliz por ele. Não queria seguramente que fosse eu a recebê-la no altar e, no entanto, tenho plena consciência que este domingo, durante uma pequena fracção de segundo, hei-de voltar a sentir esta estranheza que agora escrevo. A estranheza inevitavelmente humana de querermos o que não temos e, simultaneamente, não o suportarmos ter.

26.4.07

Abril

Descer a avenida da Liberdade, de cravo vermelho numa mão, sozinho. Comover-me com samba de imigrante, fingir que danço enquanto somo os passos descendentes até ao Rossio. Gritar «fascismo nunca mais», «o custo de vida aumenta, o povo não aguenta», olhar nos olhos das velhas - uma, desdentada, ofereceu-me o cravo - e ler-lhes alegria nos olhos. Viva a Liberdade, viva.

Encontrar a Sara de há alguns anos e alguns suspiros, combinar café, resgatar ao passado a química adormecida. Concentrar o Bruno, a Lena, a Meg [onde estava a Inês, que raio?], como fazíamos há dez anos e há cinco e há 13, cantar a Grândola baixinho, o cravo a amachucar-se nos dedos.

Jantar, petiscada, Zé Mário Branco a ecoar pela sala. Discutir a esquerda, a direita, os tortos, o país. Beber JP tinto como se fosse Barca Velha, devorar ovos com farinheira, sala de massa fria, gargalhadas, é Ábril.

25 de Abril sempre!

19.4.07

Pavilhão Atlântico

Já passaram sete dias.

Chegar à proa deste barco e ver água em todas as direcções. Tentar adormecer com saltos de montanha russa, mar zangado até Ponta Delgada, brando na travessia para o Faial, de senhoras até Praia da Vitória. Sete dias de atlântico, num camarote com vista para o horizonte eterno, às vezes mais encrespado, outras mais lânguido, azul, cinza, verde. Dentro de um barco, cada homem é uma ilha.

Nasci numa rua do Chiado, entre o Bairro Alto e o Cais Sodré, numa manhã quente de Junho. A minha mãe disse que fui um parto fácil, rápido, parecia ter pressa da travessia da vida. Parido às onze da manhã, prefiro pensar que estava em fim de noite, em vez de início de dia. A visão do Tejo foi o primeiro postal para os meus olhos, lembre-me ou não deles. E voltei a sair rio abaixo noutra sexta solarenga, esta última, com desejo renovado de me testar oceano adentro.

«Existem três raças de homens», disse-me senhor Augusto, o contramestre. «Os vivos, os mortos e os marinheiros.» Caramba. Por estes dias sou a soma das três espécies.

11.4.07

Tão bom ter telemóvel outra vez

Duas mensagens de Cuba, uma de Angola, um telefonema de Marrocos e outro do Vietname. Viva a globalização!

2.4.07

Hit the road, Jack

Começam os preparativos de viagem. Páscoa na serra da Arada, na semana seguinte embarco para atravessar meio Atlântico, planos com a família Bastos para férias em Odessa e Tiblissi [foram os locais mais weird de que nos conseguimos lembrar]. O arranha-céus é capaz de andar mais calmo, nos próximos dias. Eu, pelo contrário, muito mais agitado. O que é bom.

Quando era miudo e a perspectiva de sair de casa se começava a desenhar, o entusiasmo não me deixava muitas vezes pegar no sono. Para os primeiros acampamentos de Verão fazia a mochila com uma semana de antecedência e depois ficava a olhá-la durante sete-dias-sete, ampliando o factor ansiedade. Hoje, pelo contrário, faço mochila ou mala com meia hora de antecedência e já tenho todos os pormenores encadeados no cérebro. O estojo de higiene primeiro, T-shirts, boxers e meias depois, dois ou três pares de calças, umas camisolas quentes e um impermeável. Ready to go.

A partir dos 17 comecei a ir todos os Verões para França, viver numa comunidade isolada onde se encontrava gente de todo o mundo. Partia normalmente na primeira semana de Agosto, voltava na última e ainda ia a Barcelona ou a Amsterdão antes de voltar para casa. Financiava tudo com dinheiro ganho em Julho, trabalhava na loja do meu pai a acartar máquinas de lavar roupa para quartos pisos sem elevador e pagava assim o bilhete de autocarro. Não era só o bilhete de autocarro: o que eu estava na verdade a pagar era a sensação de partida.

Os anos e o trabalho trouxeram-me muitos quilómetros percorridos. Embarques em aeroportos, portos, carros alugados, estações de comboio. Mas nestes dias que antecedem a viagem tudo permanece na mesma. Borboletas no estômago, um tremelicar agradável, sorrisos para distribuir ao mundo. Costumo dizer que Lisboa é o melhor sítio do mundo para se voltar a casa depois de uma viagem. Sinto isso, tanto quanto me farto da cidade branca se permaneço nela demasiado tempo. Está na hora de ter saudades.

30.3.07

Kapa

A K galeria, do colectivo kameraphoto [que reúne os melhores fotógrafos da tugolândia] cumpriu ontem dois anos de vida e inaugurou uma exposição muito doida. Penduradas pelas paredes da galeria estão várias folhas A4, onde estão escritas as descrições das fotos correspondentes. Quem quiser arranca uma página, paga dez euros e troca a folha por um envelope do mesmo tamanho, onde está a fotografia correspondente à descrição. Quando mil palavras valem uma imagem.

Comprei duas. «Uma janela com frases escritas. Um vulto ao fundo, enquadrado pela urbanidade de Berlim. Mais um reflexo de árvore na vitrina» e «Teclado de computador com teclas POWER, SLEEP e WAKE de cor branca. Restantes teclas de cor amarelada. Superfície de fórmica imitação de madeira. Chave de porta com etiqueta de plástico com inscrição da palavra CRIME.» Saiu-me um Jordi Burch e um António Júlio Duarte, respectivamente. Mas não, não foi mera casualidade.

Os Ks estavam lá quase todos: a Sandra Rocha e o Guillaume Pazat vieram de propósito de Madrid, trouxeram o Fil, uma catrefada de espanhóis e a noite tornou-se uma festa. Hoje doi-me a cabeça. Mas tenho duas belas fotos aqui ao lado.

29.3.07

Mário, o marionetista

Bruxa presa por fios tem duplo feitiço. Palhaço pobre é riqueza de espírito. Aladino pendurado não é génio de lâmpada, é magia de cordel. E polícia atado é como todos os outros, facilmente manipulado.

São as marionetas que Mário, o marionetista, traz de tempos a tempos para o Bairro Alto, «custam cinco euros mas para ti faço a quatro» e para ti é toda a gente, porque toda a gente sente o fascínio de coordenar os movimentos às figuras espadaúdas, esticadas verticalmente. As marionetas de Mário são tão magras quanto ele e todas sorriem. Não há dias tristes para fantoche de madeira.

Mário vive aqui há 35 anos, mas nasceu em Angola, perto de um Huambo que se chamava Nova Lisboa. Tem carapinha grisalha, barba revolucionária branca no centro e preta nos limites. «Moldei o Mário Soares para o Contra-Informação», disse Mário, o marionetista. Talvez.

Por alturas do Natal a procura aumenta e costumo vê-lo em Novembro a percorrer o Bairro e perguntar aos frequentes: «Precisas de marionetas para o Natal? Quantas? Avisa agora que eu depois não tenho.» E ninguém avisa, mas ele fá-las à mesma e vende-as sempre, todas, nunca lhe sobra um pinóquio que sonha ser menino de verdade.

Bruxas, aladinos, palhaço pobre, polícia. A vida de Mário é mágica e as suas personagens são feitiços. Ontem, tenho a certeza, vendeu todos os seus sorrisos de madeira.

27.3.07

Janela com vista #04 - Hugo Duarte

Fala, Hugo. É desta forma singela e directa que os cariocas dizem Bom Dia. Eu continuo a preferir o instrumento de bocegar ar e simultaneamente dizer BOOOOM DIA, mas tambem nada se pode exigir de quem não toma pequeno almoço, mas sim café da manhã.

Gosto de Favela, lá tem picolé, lá tem baseado, lá tem moleque, lá tem sorriso, lá tem neguinha, lá tem medo, lá tem bicicreta, lá tem framenguista, lá tem gato-net, lá tem sacolé, lá tem invasão, lá tem camborão, lá tem lágrima, lá tem bandido, Não Gosto de Favela.

O virus da Dengue, que já foi estatico, comum, hemorragico, visceral, assumiu nova faceta surreal agora é virus da Dengue Poetica. Tem o ritual dum animal noctivago e morde preferencialmente pela madrugada quando os corpos fazem amor. E morrem...

O Romário (Baixinho) tem golos em falta, e espera por uma falta para lhe faltarem menos golos ou faltas. Faltam 2. Tem 998. No Domingo espero que marque um com a perna que partirá em dupla factura exposta e inibirá de jogar jamais.Ele tem uma filha com sindrome de Down....Irónico.

Na Lapa vendem-se beijos e roubam-se cervejas. Na Lapa roubam-se sorrisos e vendem-se bohemias. Na Lapa vendem-se gringos e roubam-se abraços. Na Lapa roubam-se sambas e vendem-se suores. Na Lapa, nos Arcos da Lapa....te dou uma lingua.

Paf, paf, paf faz a pistola. Trak, trak, trak faz a metralhadora. Pum faz a Granada. O Rio como cidade-maravilha têm tudo o que podem fantasiar/imaginar/idolatrar mas existe um ligeiro mas.....Mas,Mas,Mas faz a pistola. Mas,Mas,Mas faz a metralhadora. Mas faz a Granada.

Crystal, Bohemia, Antartica, Itaipava, Cintra, Bavaria, Kaiser, Petra, Nova Schin, Belco, Lokal, Cerpa, Skol, Lecker, Brahma e Primus expresso em modelos Pilsen, Malzbier, Beats, Bock, Gold, Light, Extra, Chopp, Lemon, Premium, Kolsch,...e quanto não vale uma Mini Sagres????

O Sol por aqui aparece todos os dias, não tem inverno, não tem verão, as vezes tem é inferno. A praia por aqui aparece todos os dias, não tem inverno, não tem verão, as vezes tem é cegueira. A noite por aqui aparece todos os dias, não tem inverno, não tem verão, as vezes tem samba.

Minha filha nasceu há dois meses, e elas já são três. Primeiro a pequena, com bigode à Manuel, feia, e imensamente fragil. A Segunda com olhares ferozes e questionadores, perguntando porque e respondendo onde. Agora a Terceira que sorri sem dentes, vomita gracejos, já diz Benfica e é Linda!!!!!!!!!!!





[O Hugo tornou-se carioca, mergulhou no Rio de Janeiro por amor e em Ipanema por filiação. Conheci-o quando ainda era um homem da Covilhã, depois veio para Lisboa e agora vive no Brasil, com a mulher e a filha, bebé de meses. Jantares em casa dele, o quintal da Copa que instalou na Penha de França, algumas imperiais, horas de conversa - eis os registos da memória transatlântica. Saudades avivadas por este texto. Brilhante, meu irmão.]

26.3.07

O dezassete

Nos dias em que há ameaça de chuva sobre a capital mais solarenga da Europa [ou simplesmente nos dias em que estou tão cansado que não me apetece cumprir a pé os 1,8 quilómetros que separam a minha casa da redacção] apanho o autocarro na esquina da América com a Guilhermina Suggia. Evito o 727 para a Picheleira, não me parece um destino digno. O 49 dá uma volta tremenda, demora mais tempo do que qualquer caminhada. Na verdade, só me resta uma opção viável: o dezassete, que desce metade da avenida do Brasil relativamente vazio, vira para a Rio de Janeiro e apanha quatro ou cinco velhotas de chapéu coquete sobre os cabelos arranjados [normalmente pode-se encontrar residualmente estas personagens cinco metros atrás da paragem do autocarro, dispostas pela esplanada da pastelaria Biarritz a beber chá a meio da tarde em bandos de duas ou três velhotas], passa pelo estádio primeiro de Maio, onde entram sempre alguns estudantes das escolas das redondezas [cadernos gastos no final do segundo período, cada vez menos mochilas, canetas no bolso de trás], vira depois para a América, apanha-me a mim e a duas mulheres a dias, uma com alcofa na mão, outra com sacos de plástico, sobe ao Areeiro pela Gago Coutinho, desce a Almirante Reis à cunha com empregados de bancos ou das seguradoras que fecham por volta das três tarde, e detém-se finalmente na Praça do Chile, virado para a Morais Soares, rua multicultural e cosmopolita, com lojas a preços de revenda e clientela das classes operárias.

O motorista do dezassete não era hoje o do costume. Este tinha quinas na mão, que não significam nenhum espírito patriota relevante, apenas o facto de ter estado preso. Quando entrei, ele conversava animadamente com o revisor: «Só espero que tenham percebido a mensagem», comentou o revisor. «As pessoas estão fartas», respondeu o condutor e eu sem perceber o tónico da conversa.

Afastei-me por instantes, não havia lugares livres no autocarro e eu fiquei em frente a duas senhoras que seguramente haviam entrado na paragem frente ao Biarritz, ainda que uma delas não usasse chapéu, antes um alfinete de peito em forma de borboleta presa sobre o lado direito do casaco. «É um escândalo», dizia uma. «Um escândalo», confirmava a outra enquanto procurava na mala de pano um pacote de lenços de papel, tirava um e se assoava sem fazer qualquer barulho. Atrás de mim, duas adolescentes comparavam toques de telemóvel, riam-se muito indiferentes à polémica. Voltei a encaminhar-me para a parte dianteira do dezassete, onde motorista e revisor prosseguiam o tónico animado: «Perdeu-se o respeito e os políticos são uns corruptos. Precisávamos de voltar ao antigamente.» E foi então que percebi tudo. Os telespectadores da RTP escolheram ontem António de Oliveira Salazar como o maior português de sempre e o dezassete seguia em alvoroço pela bizarria do facto.

É lamentável, muito triste mesmo, que um grupo de votantes escolha um pequeno ditador, tacanho e provinciano, como modelo a seguir. Mas é um sério aviso à navegação - as pessoas estão fartas da crise, dos políticos corruptos, das medidas de cosmética, dos salários baixos, deste projecto de Portugal falido. O escândalo não é a conversa do dezassete, nem a escolha de salazar como o maior português. O escândalo é a política de educação deste país.

23.3.07

Janela com vista #03 - Helena Teixeira da Silva

Na Primavera começava a contagem decrescente. Os cadernos pretos encadernados com a arte que à altura admirávamos já quase não tinham páginas brancas, mas sabíamos que não tínhamos que comprar cadernos novos. Juntavam-se umas folhas A4 emprestadas e serviam perfeitamente para apontar uns sumários aos quais já não daríamos grande importância. Como se o sol fosse a fronteira que ditava a matéria que já não sairia nos testes. Os livros, já todos amarrotados, serviam-nos de almofadas nos intervalos. E os intervalos eram cada vez maiores porque descobríamos o prazer de chegar depois do segundo toque, de sentar na última fila, de não esticar o dedo para responder às perguntas só porque não - o sabor de quem sabe que está no fim da linha. De quem tem os pés na sala e a cabeça onde a voz do professor não chega.
 
Experimentávamos, com a excitação dos rituais clandestinos, os primeiros cigarros atrás dos pavilhões; alguns trocavam os primeiros beijos. Os contínuos, com os olhos dentro dos bolsos das batas, fingiam não ver. Sorriam discretamente, não como guardiães daquele segredo; mas como se só eles soubessem que nenhum amor sobreviveria às férias grandes. Havia sempre só um rapaz desejado - o mais marginal e tendencialmente o mais velho; sempre só uma rapariga - a mais bonita. Ninguém ficava triste com isso. Era assim. No ano seguinte, talvez os eleitos fossem outros. Eram outros. Trocavam-se bilhetes, promessas enigmáticas escritas a giz nos postes pretos dos corredores. E sonhos, que não eram de Verão, mas do próximo campeonato lectivo. E tudo batia sempre certo. Como nos filmes. Nenhuma história capotava.
 
Um dia, saíamos de casa para a escola sabendo que não teríamos escola. A lição número cem de cada disciplina era comemorada com pic-nic e gazeta. E euforia. Não era só o ano lectivo que estava a quase a acabar. Eram esses amores, protelados durante três períodos, que floresciam, finalmente. Eram as frases silenciadas que ganhavam forma. Era a súbita confiança com os professores e a argumentação que os convencia a esticar um quatro para um cinco - ou um dois para um três. E eles cediam, certamente convictos de que inflacionar notas na aldeia não haveria de corromper o mundo. Era o contraditório desejo de que não acabasse já ali a maratona das aulas. Embora se faltasse cada vez mais às aulas. Embora ser expulso delas se tornasse num improvável momento de glória. Os inquilinos das cadeiras dispostas atrás das mesas em forma de U mudavam nas últimas semanas: as equipas sexistas eram substituídas por casais.
 
Íamos para o rio na recta final do percurso. E ninguém se sepultava primeiro dentro de um solário por temer exibir a brancura epidérmica. Ser mais ou menos gordo também não era obstáculo para vestir os biquinis da época anterior. Não era relevante. Não se falava disso. Falava-se de tudo o que se calou durante um programa curricular inteiro. Partilhavam-se ideais, caminhos de futuro. E antecipava-se a viagem anual, onde mais paixões haveriam de surgir. Viagens ali, ao virar da esquina, que nos deslumbravam como cruzeiros. Havia sempre alguém, geralmente o rapaz marginal cobiçado, que saltava da ponte mais alta. E sempre alguém que levava um rádio de pilhas com os hits do momento.
 
Depois, os viciados como eu, iam jogar Tetris até não haver mais moedas no raio de cinquenta metros. Nem os empregados do café eram poupados ao peditório. Tudo em nome de um novo recorde. Bebia-se café com natas. Aguardava-se o baile de fim de tarde, derradeiro momento para angariação de fundos e slows suados dançados às escuras. O concerto nocturno das bandas de garagem da terra encerraria um capítulo que todos sabiam que haveriam de contar vezes e vezes sem conta pela vida fora.
 
Voltávamos no ano seguinte. E nunca voltávamos iguais. Voltavam os enérgicos debates para a eleição da associação de estudantes. Vitórias emolduradas. Devagar, talvez com maior vagar do que nos sítios onde viviam as pessoas que conhecíamos Verão-após-Verão, crescíamos mais um bocadinho. Mas continuávamos a acreditar, tão cândidos como no início, que nunca haveríamos de nos separar. No fim dos anos lectivos todos, doze seguidos, candidatámo-nos, os seis do núcleo duro, à mesma cidade. Lisboa era a mais conveniente para um, para o que queria Comunicação Social; logo, a mais conveniente para todos. Donos do nosso pequeno pódio transmontano, não estávamos habituados a ser driblados pela ideia de que há mais mundo além do nosso. Ficámos todos separados.






[A Helena é transmontana de gema, portuense de residência, lisboeta de espírito, jornalista de vocação. Conheci-a no Porto há não muito tempo, por intermédio do catalão maluco, e percebi de imediato que a conhecia há muitas vidas. Apresentou-me alguns dos lugares mais cool da Invicta, fez-me ter saudades de uma cidade que me costumava passar ao lado e, por isso mesmo, hoje o meu Porto também se chama Helena. Aqui fica uma excelente janela com vista do Arranha-céus, escrita com palavras de algodão doce.]

22.3.07

Road movie

Se há coisa que me tem dado gozo desde que fui viver para a América é ir ao cinema sozinho. Também gosto de ir acompanhado, de preferência bem acompanhado, mas de vez em quando dou uma volta maior a caminho de casa e passo de propósito pelo King só para ver o que anunciam os cartazes. Se gosto, entro e peço um lugar a meio da sala, sozinho, sem distúrbios. Aconteceu-me ontem.

No domingo fui beber um chá a Vale de Lobos e dei por mim a falar com os pais de uma amiga sobre os rituais de uma ida ao cinema. Nos anos 60 as pessoas aperaltavam-se para ir ver uma sessão ao Império, ao Europa, ao Éden ou ao Cinema Roma [todos eles extintos, fechados, recovertidos em locais de culto e colecta do dízimo, ou pior ainda, deitados abaixo e transformados em urbanizações e edifícios de escritórios], passavam dois filmes, ou então apenas um com documentários e espectáculos musicais pelo meio. Havia intervalos onde as mulheres se dirigiam ao foyer para bebericar capilé e os homens um moscatel. O cinema era fogueira de vaidades, ponto de encontro para conversas e escaladas sociais, palco informal de negócios e acertos de contas. Hoje as salas saíram do centro para a periferia da cidade, os filmes são exibidos em complexos multiplex, as pipocas substituíram o capilé e ninguém barra a entrada a quem entrar no cinema de sandálias, calções e saias.

O King tem algum glamour europeu, que é diferente do velho charme dos cinemas lisboetas. E, sem saudosismos dos tempos que não vivi, congrega o melhor dos dois mundos: é suficientemente descontraído mas não é ícone de nenhum padrão de consumo ou de montra de imagens para lá das que passam na tela. Além de que, ali, não se vendem pipocas. Por isso é que me deu tanto gozo ir sozinho ver o «Half Nelson» [bom filme, excelente interpretação]. Sentei-me no centro da sala disposto à solidão diante do ecrã quando, passados minutos, senta-se à minha direita um conhecido do Bairro Alto e à esquerda um conhecido da faculdade.

Lá se foi o plano de eremita. Mas o cinema é isto, não é? Uma escola de ilusões.

21.3.07

Janela com vista #02 - Rui Gouveia

DIA I – Ai Jesus…

Não sei como é que me fui meter nisto.
Eu que nem nunca fui destas coisas…
Agora sou escritor.
E escrevo sobre a vida, o mundo e os homens.
E cada uma destas coisas dava para escrever tanto, tanto, tanto, que é quase mais tanto quanto tanto tem o mais.
Assim como não há nada perfeito também não há nada que não o seja.

Ainda antes de acordar já vejo o mundo, aquele dos sonhos.
Acordo e abro os olhos.
Vejo agora dois mundos: o físico que me rodeia e o outro, o dos sonhos acordado.
E é com estes dois que saio para a vida, num turbilhão de interacções.
E assim ando até fechar novamente os olhos e os dois se voltarem a encontrar naquilo que eu sou…

...uma história inconsolável. Um caso incontornável de uma vida desgraçada.
A manhã cinzenta do caos agoira uma tarde despedaçada de estilhaços incongruentes e falidos. A nota do espaço aponta o infinito, o caos do romantismo a morte.

Nenhuma desilusão é pior que toda a vida sem sentido.



DIA II – Tou Fuck…

Vivo numa ilusão tão grande, numa tão imposta realidade que não é minha!
E então tenho de imaginar e viver com outra, que temo que desapareça no dia em que a esperança se queda.
E esta, perco-a quando superada pela angústia, fruto de um acumular de momentos. Aqueles em que não acredito que compense, quando todos os elementos que me mantêm vivo estão presentes apenas na memória, substituídos no sentir por um enorme vazio.

És um conflito vivo
Inconstante a todo o momento
Para assim te manteres igual a ti próprio
Nessa forma de viver aos sobressaltos

Procura-se algum conforto
Serenidade e paz
Sempre às voltas e sem repouso.


Falta-me a sensatez e paz de espírito
Para atingir ou apanhar
O que em inquietude vejo
E não consigo alcançar

As nossas almas passeiam juntas de mãos dadas. E riem-se de nós, que barrados pelos sentidos que os nossos corpos nos forçam a ter, continuamos às voltas, baralhados em sentimentos, a complicar o que é tão simples.
E elas riem-se.
Porque se deixam ir, porque lhes é fácil tudo o que nós gostaríamos mas nunca vamos ser.
(continua…)



Dia III – Eh Eh Eh! ;)

O Ser Humano só está bem quando tem o que quer.
E isso, é impossível de mudar.
Pode-se mudar é o que se quer.

De que vale o conhecimento se dele não se retirar proveito?

Tu que sabes e eu que sei, cala-te tu que eu me calarei. (adoro-te Avó Graça)

Não esqueço nada do que sei, não guardo nada do que esqueço, não nego, não minto.
E sou feliz!!!!!!!!
No limiar está a fé. No Benfica, na minha tia, na rebeldia ou na batata. Porque nunca o analisador poderá definir totalmente o analisado sendo simultaneamente os dois.
Resta ACEITAÇÃO, COERÊNCIA e deixa andar.
Venha a festa.
Até já.

* Parabéns pelo blog Ricky, és grande. *

Hergé



[Isto é pura introspecção à moda do Gouvas. O Gouveia, Rui Miguel, é amigo desde a adolescência sintrense, da família que eu escolhi. Fomos expulsos dos escuteiros juntos, o que nitidamente não é para todos. São muitos anos de acampamentos, borgas, viagens, idas de carro até França e de autocarro até à Polónia, uma casa partilhada entre nós dois e a Vanda durante dois anos, festas trance, planos para uma ida a Berlim e um livro que ele quer - deve - escrever. O Gouvas vive em Benguela, Angola, há dois anos. O currículo diz que é engenheiro, mas isso é apenas a aparência. Em abono da verdade, o rapaz é um boémio de ideias largas e gargalhadas fáceis. Abraço para esse hemisfério, irmão.]

20.3.07

A estrela da Amadora

«Sabias que se chamava Porcalhota», perguntava-me a avó Arlete sobre a Amadora sempre que íamos dar um passeio. Morava ali desde a adolescência da minha mãe, num quinto andar da avenida de Pangim, que fica quatro ruas acima do estádio do Estrela, pertinho das escadas que dão acesso à clínica de Santo António.

«Sabias que se chamava Porcalhota» e eu escangalhava-me a rir, as mãos dadas à avó Arlete e ao avô Armando, enquanto descíamos a Reboleira e seguíamos para a Damaia, depois subiámos a rua para passar a linha de comboio numa fresta da vedação em Santa Cruz, seguíamos então para as portas de Benfica, até à estação, e fazíamos o percurso inverso, caminho de bairros de lata e africanidades, sem medos, apenas afogueados. Só eu queria ir com a avó Arlete e o avô Armando passear, os meus irmãos preferiam ficar a brincar ou a ver desenhos animados. «Sabias?»

O quinto andar na avenida de Pangim tinha as paredes cobertas de tinta de água, era reluzência fora de moda. Verde cueca na casa de banho, azul atlântico na sala, vinho tinto no hall de entrada. Havia o quarto, com mesinhas de cabeceira cheias de Selecções do Reader's Digest e as prateleiras cheias de livros de Agatha Christie e Heinz Konsalik, que a avó Arlete lia de uma ponta à outra religiosamente, e duas casas de banho. Depois existia a sala, a salinha e a sala de costura, onde ela passava noites curvada sobre a velha máquina Singer, cosendo fechos eclair brancos em oleados azuis escuros para fazer sacos de desporto. Na salinha dormíamos nós, sofá cama aberto para mim e o Hugo, o David num colchão pequeno, à sua medida, esparramado no chão. E a sala, interdita à nossa entrada, tinha um quadro de um menino a chorar na parede e uma mesa de mármore no centro [uma vez parti ali a cabeça mas não contei nada à avó Arlete, com medo de represálias por ter entrado na zona proíbida da casa], mais três quadros de uma queimada em África, que o tio Vítor trouxe de Angola. Lá fora um jardim de ervas daninhas onde às vezes encontrava a professora de História do colégio D. Afonso V, a quem chamavamos Escarreta por ter um problema na laringe que a fazia puxar a expectoração a cada cinco minutos de discurso. E a igreja da Reboleira, onde vi os meus avós casarem quando era menino [é caso raro, alguém ir ao casamento dos avós. Mas os meus tinham passado uma vida de união civil e só aos cinquenta anos de parelha se decidiram pelo matrimónio].

Ontem fui ver o Benfica jogar no campo do Estrela da Amadora e depois liguei ao meu pai, era dia dele, para que me apanhasse e fossemos jantar. «Encontramo-nos à porta de casa da avó Arlete, lembras-te onde fica?» Como se algum dia me fosse esquecer... E lá subi as quatro ruas e passei pela igreja onde os meus avós casaram, lá observei meticulosamente os degraus da escadaria que dão acesso à clínica de Santo António, lá me dispus a esperar pelo meu pai diante do quinto andar da avenida de Pangim. E tudo o que antes era território de gigantes agora me parecia pequeno, excepto a memória da avó Arlete, a minha estrela da Amadora, que um dia me fez prometer que haveria de escrever um livro em honra dela e eu cumpri.

Tenho saudades tuas, avó.

19.3.07

Horários trocados

Ontem deitei-me às 22h e hoje levantei-me às oito da matina. Isto não é normal.

15.3.07

Diz que é uma espécie de alzheimer

Perdi outra vez o telemóvel. Este ano ainda não tinha perdido nenhum, mas em 2006 perdi sete aparelhos da Nokia, o modelo mais barato, claro, o que perfaz no ano passado um investimento de 350 euros em telecomunicações - e isto sem contar com carregamentos e taxas por estar sempre a pedir novas vias dos cartões.

O cúmulo aconteceu em Dezembro. Comprei um telemóvel no início do mês porque na semana anterior tinha perdido um no táxi. Dias mais tarde o aparelho desapareceu e tive que comprar outro em Aveiro - era este, o que agora perdi em parte incerta.

Dezembro é, aliás, um mês negro para os meus telemóveis. A única vez que decidi fazer um investimento mais avultado na área das telecomunicações foi para comprar um aparelho de elevado gabarito, que por acaso não tirava fotografias mas era um verdadeiro espectáculo de cor, luz, som e imagem.

Adquiri essa obra de arte no início de Dezembro de 2003, com o advento do subsídio de Natal. Levei-o para a redacção orgulhoso, a maquineta impressionava mais do que um Ferrari ou um veleiro [cabia num só bolso e no entanto era tão estridente e pimba que arrancava ohhhhs de espanto]. Durou duas semanas. Um dia, na louca esquizofrenia que pautava a labuta jornalística na revista Focus, atirei-o ao ar e ele aterrou-me em cima da mesa com o ecrã - o magnífico ecrã - partido.

Jurei para mim mesmo nunca mais comprar um telemóvel caro. Ao invés, adquiro vários a baixo custo mas, feitas as contas, é como se adquirisse todos os anos um topo de gama. Talvez fosse melhor poupar dinheiro e comprar um cérebro novo.

14.3.07

All-Star system

Quando andava no liceu, tinha dois pares de ténis All-Star – uns vermelhos, outros azuis – e trocava as cores dos pés. Ou seja, pintava de vez em quando o pé esquerdo de azul e o direito de vermelho, ou vice-versa. Hoje, que os All-Star voltaram à berra, tenho apenas um conjunto, comprado na avenida Florida, em Buenos Aires, por meia dúzia de pesos. São cinzentos ratazana, propositadamente desbotados, com atacadores brancos.

No início dos anos 90, os All Star eram uma instituição. O paralelo com as Doc Martin nos eighties [conotadas injustamente com os skinheads, já que nessa década elas eram usadas por toda a gente, dos punks aos meninos da linha], mas numa versão mais descontraída, registo veranil. Os All-Star atravessavam todos os estilos, todos os públicos e gostos de uma determinada faixa etária. E voltaram, em versão revival.

Ontem, no Bairro, pus-me a olhar para os pés das pessoas. Contei muitos All-Star, muitos, sempre nos pés de quem os usava há 15 anos, quando tinha 15 anos. E eu, que andava com uns ténis da Reef amarelos, senti-me deslocado, quase um traidor.

Esta manhã calcei os meus All-Star cinzento ratazana, comprados em Buenos aires por meia dúzia de pesos, e fui pô-los a passear por Lisboa. Eles gostam de arejar, eu gosto da descontracção e a postura assume um sintoma: o Verão está quase a chegar.

13.3.07

Avanços científicos

Ontem estive em Cabo Verde. Já não ia lá desde 2000, morria de sôdade, sôdade, sôdade...

Entrei em Cabo Verde à meia noite, saí às três da manhã. No minuto anterior a aterrar no Mindelo estava em Lisboa, no minuto seguinte também.

Não tive por isso tempo para qualquer voo transcontinental, fui a Cabo Verde e vim por teletransporte. Einstein tinha razão, há tantos anos que ele anunciou viagens no espaço e no tempo com a sua teoria da relatividade.

Os cientistas ainda não sabem como funciona o teletransporte, mas eu aprendi tudo ontem à noite. Mudei de continente em menos de ai, assim que subi as escadas do B. Leza para ouvir Tito Paris.

Lá dentro estava aquele calor suado das ilhas, cerveja morta ao balcão, regras de sedução simples para dançar mornas ou coladeras.

Não há dúvidas. Ontem estive mesmo em Cabo Verde.

12.3.07

Greenpeace

De todos os ecologistas que conheço nesta cidade - biólogos e escuteiros; vadios que dormem sob um tecto estrelado, em bancos de jardim, e passam os dias a alimentar pombos com pedaços de pão duro vasculhados nos caixotes de lixo; matilhas de freaks de garrafa de vinho e djambé em punho, amontoados nas ruas pedonais a cravar trocos para compensar a batida, e inevitavelmente rodeados de cães por todos os lados - a maior é sem dúvida a dona Margarida.

A dona Margarida vive na América, é a minha senhoria. É mulher de sentenças catastróficas, ao longo de um só dia é capaz de ordenar morte verbal a um bairro inteiro e, no entanto, derrete-se sempre que encontra qualquer animal desolado - um pombo de asa partida, um gato que o dono pretende afogar, um perro abandonado nas férias. Há dias, corria eu para a estação para apanhar o comboio para Sintra, encontrei-a na rua revoltada: «cortaram-me duas árvores.» Onde? «Ali em cima, perto da avenida de Roma.» As árvores não eram dela? Eram. As árvores são de quem as ama.

Na sua casa na América, dona Margarida acolhe os refugiados das ruas. São três cães e oito gatos, mais dois pombos de asas quebradas. Costumo encontrá-la a passear os primeiros, a bengala numa mão e duas trelas na outra [um dos perros caminha solto], mais um chapéu de padrão galês que lhe dá um ar senhorial.

A outra casa que dona Margarida tem livre no prédio serve de abrigo à passarada das redondezas. E junto à escadaria do sétimo piso, que tem alguns vidros partidos, coloca recipientes de água para as aves de Lisboa se refrescarem. Diz-me que já teve muitos mais cães, muitos mais gatos, e uma diversidade de animais que nem sequer consigo reproduzir.

A dona Margarida usa óculos, tem miopia como eu. E, ao longo destes meses de América, não foram raras as vezes que ela me convidou para almoçar.

É, repito, a maior amante dos animais que eu conheço.

7.3.07

Família Bastos, ou a novela da vida real

OS PROTAGONISTAS

. JOE BASTOS: fotógrafo, careca, pauta a sua vida pelo estrilho que dá. Os amigos também o conhecem por Joe, o Índio ou Nenuco. Ou ainda por Pai Tirano, sempre que as suas frases começas por «se fosse comigo...»
. JORDI BASTOS: fotógrafo, catalão de nascimento, hiperactivo e autor de uma linguagem própria. Para ele, mal significa bem, kombu é sinónimo de dinheiro e machibombo quer dizer autocarro.
. RICKY BASTOS: jornalista, sintrense e benfiquista, o que irrita solenemente o resto da irmandade. Tem fama de prostituta do mercado da habitação e de ouvir vozes na cabeça, sempre que não toma os medicamentos.
. SOPHY BASTOS: jornalista, o mulherão do grupo. Corre sérios riscos de se tornar esquizofrénica, e esses sintomas são visíveis sempre que atravessa o Bairro Alto a fazer entrevistas imaginárias. Trata os amigos por «muchachos».
. TIAGO BASTOS: infográfico, poeta, um romântico disfarçado de jagunço. Vive fascinado por tudo o que é esotérico e é frequentador assíduo do Bairro Alto. Entre as suas quatro frases de engate preferidas, contam-se três citações de Nietzche.


O ENREDO

Há cerca de um ano, Jordi Bastos e Sophy Bastos decidem percorrer a América Latina em trabalho, para fazer reportagens. Contra as previsões da grande maioria da imprensa, não se enrolam. Joe Bastos, Ricky Bastos e Tiago Bastos deixam-nos no aeroporto e despedem-se dos viajantes em lágrimas. Tiago Bastos, que vivia com Jordi Bastos, está inconsolável. Num acto de generosidade, Ricky Bastos muda-se para casa de Jordi Bastos. Joe Bastos também costuma lá viver, mas não paga a renda.

Em Maio, e movidos por uma saudade cortante, Joe Bastos, Ricky Bastos e Tiago Bastos viajam para a Argentina a fim de se encontrarem com o resto da irmandade. No aeroporto de Buenos Aires, correm uns para os outros em delírio. Passam mais de dez dias bêbedos, a desbravar a cidade e trocar confidências. Decidem depois ir passear para o Chile. Assumem perante o mundo que são uma banda de rock'n'roll europeia e muita gente acredita neles. No regresso a Buenos Aires, a choradeira repete-se. O tempo de América Latina está quase a terminar.

Os dias correm serenos em Lisboa. Tiago Bastos, Joe Bastos e Ricky Bastos entregam-se a uma vida de álcool e mulheres, desconsolados com a saudade dos amigos. Sophy Bastos e Jordi Bastos nunca recuperam verdadeiramente do encontro com o resto da irmandade. Nos restantes dois meses que permanecem em solo latino-americano, abdicam das reportagens e entregam-se à lazeirice. Regressam a Portugal e há nova cena de novela mexicana no aeroporto. Lágrimas, abraços, uma festa.

Alguns dias de festa para comemorar o regresso dos amigos. Nova despedida comovida no aeroporto: Ricky Bastos vai para o Sudeste Asiático e a irmandade separa-se outra vez. Quando regressa, já Joe Bastos abalou para a América do Sul, à procura de nova vida e, sobretudo, boa vida. Tiago Bastos, Sophy Bastos, Ricky Bastos e Jordi Bastos passam sete meses em Lisboa, com algumas saídas ocasionais. A irmandade permanece junta, mas falta um elemento. O Nenuco entretanto telefona, notícias de auspício.

Hoje à noite, Joe Bastos chega à cidade. Por breves dias [que já se anunciam partidas, largadas, fugidas], Família Bastos está reunida.

5.3.07

Então!?

Estudei em Sintra, numa escola com história, pavilhões antigos, professores de cãs. Só tinha aulas do décimo ano em diante, pensávamos que éramos enormes. No intervalo juntávamo-nos invariavelmente no «quadrado», um espaço coberto de zinco e rodeado de edifícios por todos os lados. A Associação de Estudantes punha cá fora duas colunas e passava invariavelmente as mesmas músicas: «Hoje é dia de orgia paroquial» e «Chiclete» para a carola. Eu, a Ana, a Elisa, o Miguel, a Rita, a Sofia e a Céu [mais tarde a Lina, o Simas, a Gabi, a Ana] reabrimos o «Então!?», jornal da escola com mais de 20 anos. Era feito por um bando de putos sonhadores, mas era bem feito, em off-set, com reportagens, entrevistas, crónicas e rúbricas fixas. Mais, dava-nos a vantagem de termos acesso privado a uma sala só para nós - o GAC, Grupo de Acção Cultural, por cima dos laboratórios de Química e ao lado do laboratório de fotografia. Era o nosso espaço. Chegámos a ficar trancados na escola depois desta fechar, para lá da hora em que a Cinderela se transforma em abóbora.

O pessoal do grupo de teatro guardava os fatos e adereços na nossa sala, na redacção, o que nos permitia fazer decorações alucinadas e aprofundar ainda mais o espírito revolucionário. Íamos para lá no fim das aulas e punhamos alguns adereços, falávamos dos artigos que estávamos a fazer e dos que podíamos fazer. Lembro-me da primeira edição do jornal, esgotou. À última da hora, a Céu pediu-nos para fazermos um agradecimento à Câmara, que nos tinha patrocinado a impressão com o projecto a escolha quer fazer. Nós escrevemos:
«A Câmara não é só aquele edifício bonito cheio de senhores feios. Quem feio ama bonito lhe parece, e muito bonito nos pareceu o senhor vereador da educação quando resolveu apoiar o nosso projecto.»

Lembro-me que a Sofia conseguiu fechar o salão de jogos em frente à escola depois de investigar a lei e escrever um artigo a falar da violação da mesma. Lembro-me de fazer uma entrevista à presidente do Conselho Directivo que deu polémica ao ponto de ela nos impedir de mostrar o jornal na feira das escolas [e nós montámos um pavilhão à revelia, claro]. Lembro-me de uma entrevista da Ana ao Fernando Pereira e das críticas culturais da Elisa, da Rita investigar os arquivos da escola, do Miguel inventar um poema marado sobre um relógio parado há anos no pavilhão da biblioteca.

Depois seguimos caminhos diferentes. Houve zangas, cumplicidades certificadas, afastamentos naturais. Mas isto é certo: é por causa do «Então!?» que eu sou jornalista. E esse será sempre o melhor jornal onde já trabalhei.

2.3.07

Agenda cultural

De vez em quando apercebo-me que esta cidade fervilha.

Ontem, subia eu o Bairro Alto ao fim da tarde, quando encontro na esquina de todos os encontros o Samuel, saxofonista sintrense, armadilhado em sopro e a dar baile ao bairro. Logo a seguir, apareceu-me pela frente a Dª Lurdes, empregada do Jordi e do Tiago [minha também, quando eu morava em casa do primeiro], com os seus óculos violeta de pastilhada a darem modernidade aos 64 anos da personagem. Abraço, «ai filho estás tão magro, estás tão bonito», e subo a rua com um sorriso. Ao jantar, apareceu o António Júlio Duarte, grande fotógrafo da tugolândia, que acabou de inaugurar uma exposição no Museu de História Natural.

No dia 8 de Março estreia na Casa Fernando Pessoa a exposição de fotografia «Estamos Juntos!», de Jordi Burch. Veni, vidi, vici - que o catalão maluco é talento através da objectiva e, como se não bastasse, um dos meus melhores amigos. É às 18h30 e há croquetes à borla. Estou lá!

[... já agora, nessa noite o Music Box, Cais do Sodré, apresenta Cosmic Sandwich e Zentex. o primeiro é o alterego do Steve Barnes, the king of electronic music, o segundo é um dj finlandês muito louco que mistura a arábia com o pastilhanço - genial...]

Por volta das três da manhã, mais música no BA. Quatro tipos a subirem a Atalaia com instrumentos e ritmo, percurssão animada, fiesta! São os Tora Tora Big Band, que vão apresentar o segundo álbum a dia 9 de Março, no Santiago Alquimista. Além de serem uns tipos porreiros, pareceu-me que a música bombava. Vamos ver?

Definitivamente esta cidade fervilha. É impressão minha ou está a acabar o Inverno?

28.2.07

Janela com vista #01 - Filipe Garcia

UM ABRAÇO AO MEU MOTORISTA

O relógio já anunciava um atraso recorde quando saltei da cama. Banho rápido, sem tempo para fazer a barba, café e cigarro no café do senhor António e, só depois, uma desagradável constatação: é dia de chuva molha-parvos. Decidi apanhar um táxi, mas primeiro impunha-se uma corrida pelos MB da zona para encontrar dinheiro. Aos meus ouvidos, os Rolling Stones declaravam-se seguidores do Diabo e marcavam o ritmo da primeira corrida do dia: de um lado para o outro, em busca de uma caixinha mágica, sem fila e sem o sinal que anuncia a impossibilidade de fazer levantamentos.

Entrei no carrinho amarelo e lembrei-me de um post do Ricky Rodriguez. Ouvia-se música sinfónica e entre os dois bancos da frente estava um livro, tão gasto como a camisa de flanela que o meu motorista (soa bem esta frase) vestia, que me alegrou o despertar: Balzac, A comédia Humana.
Nem em Paris ou Londres, onde a escolaridade e o índice de leitura de jornais é dez vezes superior ao nosso, deve ser usual apanhar um taxista – nome que normalmente uso para me referir ao meu motorista – que lê um livro com 3500 personagens.
Para grande pena minha, que gosto de falar de futebol sempre que o Sporting anda pelas ruas da amargura, não houve conversas, mas animei. Gosto de descobrir pequenos sinais de que Lisboa não é a cidade do Não ao Aborto, que não é por aqui que estão os eleitores do Cavaco ou os telespectadores que estão a empurrar o pequeno ditador para o topo da lista dos maiores portugueses. Gosto de me lembrar que foi por aqui que andou Fernando Pessoa, que foram estas ruas que apaixonaram o Wim Wenders e que foi entre as suas ruas que o pequeno ditador, e antes dele a monarquia, foram derrubados. Gosto de Lisboa.

Londres é cinzenta, Paris é iluminada, Berlim é acelerada, Madrid não tem água e Amesterdão tem frio demais. Lisboa pode pagar mal, pode estar cheia de pequenos portugueses e às vezes até pode obrigar a uma fuga rápida para uma praia semi-deserta, mas tem uma capacidade mágica de nos fazer viajar sem sair do local. Descer a encosta do Castelo, subir até ao Bairro Alto para beber a melhor cerveja morta do mundo, ir ao Lux cheirar um bocadinho de Nova Iorque ou correr pela baixa pombalina com os olhos postos no rio são viagens que eu não consigo dispensar. É a cidade onde tanto se pode ouvir o saxofone do John Coltrane em gritos graves ou a mais feliz das composições do Count Basie, é nas suas ruas que tanto se podem cantarolar as mais psicadélicas músicas dos Beatles como relembrar os velhos tempos do liceu Camões ao som dos Nirvana. Uma cidade onde tanto Paredes como o Mário Laginha jogam em casa tinha de ser a minha. É a cidade do meu Benfica. É a cidade onde um taxista, perdão, onde o meu motorista me fez pensar e me animou o dia. Um abraço ao meu motorista.


[O post é do Filipe Garcia. Conheci-o em Ranholas, quando ele chegou à Focus e se sentou à minha frente, na única secretária disponível, e veio pôr em causa o meu estatuto privilegiado de eremita na redacção. Logo nesse dia, ouviu o meu editor gritar comigo porque eu tinha chegado tarde. No dia seguinte, viu-me chegar tarde novamente. E no outro dia também. Percebeu logo o tipo de jagunço que tinha por diante e, provavelmente por isso, lá se foi revelante. O Fil é amante da música, benfiquista convicto, passageiro frequente do Bairro Alto e da blogosfera, homem das letras com veia para a reportagem. E bom amigo, obviamente. É ele que inaugura a nova rúbrica do arranha-céus, Janela com vista, em formato de post convidado. Assim escreve o homem que mais cigarros fumava à chuva, em dias de fecho da revista, no exterior de um edifício espelhado no fim do IC19]

23.2.07

Pensamentos itinerantes

A meio da Avenida Almirante Reis, entre a cervejaria Portugália e o centro comercial com o mesmo nome, há uma espécie de vão de escada onde vivem sete sem-abrigo. Vieram todos do Leste da Europa - cinco ucranianos, dois romenos - e fazem-me pensar se a Cortina de Ferro caiu mesmo ou não foi mais do que a ilusão globalizada de um muro em ruínas. Entraram em Portugal ilegais, trabalharam nas obras com salários vergonhosos e sem regalias sociais, foram despejados das casas que alugaram e partilham aquela aldeia de cartão e plástico mesmo no centro da urbe. Estranha comunidade desolada, quotidianos afogados em solidão, muito vinho a aquecer as noites frias da Lisboa invernal.

O centro comercial Portugália é um cenário tão desolador quanto o da aldeia de cartão e plástico. Lojas vazias, um café decrépito, um cabeleireiro africano escondido na sub-cave, um «Independente» falido no oitavo andar. Mas são vistas estáticas, imutáveis, não fosse o pó que se vai acumulando no interior das montras cheias de coisa nenhuma.

Os sem-abrigo, pelo contrário, são a metáfora da condição nómada da raça humana. Caçadores-recolectores de caixotes de lixo e sobras dos outros, preparados para mudar a localização da tribo assim que o mundo lhes exija que se escondam dos olhares dos outros. E, no fundo, nada os prende. Edificaram uma cidade gasosa no meio da cidade de betão e placa.

Há três ou quatro noites seguidas que não durmo em casa. Ando com uma mochila com o que considero essencial - duas mudas de roupa, escova e pasta de dentes, a cera para o cabelo. Ou seja, ando a fazer o meu próprio ensaio nómada, a dormir em casa de amigas, jantar em casa de amigos, visitar a família, registo non-stop. É um interrail urbano, este. Provocar a sensação das férias [andar, seguir, avançar, não há amarras] em quotidiano de rotinas. Quebrá-las, então, ou simular que sim.

É que entre viver numa aldeia de cartão e plástico no meio da urbe de betão ou sentir-me montra de loja que se enche de pó prefiro a primeira. Sentir-me sem-abrigo, em constante viagem. É o meu defeito de fabrico, o meu erro genético. Ou então é só porque não saio de Portugal há cinco meses.

22.2.07

Rebenta a bolha

Nitidamente sou da geração de 70. E ainda bem, porque eu e os outros da segunda metade da década crescemos com algum do sistema de valores dos tipos que apanharam com o 25 de Abril em cima, mas não nos lixámos tanto como eles [o nacional-porreirismo dos que eram teenagers nos 80's descambou em muita droga, pouca acção, alguma desilusão e um peculiar desconsolo social]. Fomos os últimos a ir brincar «lá para baixo», que é como quem diz na rua - as miúdas a saltar ao elástico, os rapazes a jogar ao guelas, quem tivesse o maior abafador era rei do recreio, todos a partilhar sirumba e futebol humano, escondidas, apanhada, o máta. E fomos os últimos com três disciplinas no 12º ano, a ter que levar aquelas horrorosas sapatilhas brancas para as aulas de educação física, a saber de cor as letras do Zeca Afonso.

O meu irmão mais novo, de 1982, tem uma opinião menos saudosista, zomba do estilo «no meu tempo é que era bom». Diz ele que quem nasceu nos 70's é normalmente «enrezinado», «parece que lhes devem e não lhes pagam». Mas lá admite que somos uma geração equilibrada, os tais que fazem reciclagem, votam, discutem política, cresceram com a obsessão do objectivo de vida e estão mais ou menos cientes de que é preciso tomar opções, definir um rumo. Eles não, são mais go with the flow. «Nós temos mais acesso à informação do que vocês mas somos menos informados em termos gerais, e mais em interesses particulares», sentencia o David. Concordo. E continuo a preferir a idade que tenho.

No entanto, na última semana, estas certezas ficaram subitamente abaladas pela dificuldade em transitar a velha conta de blogger para a nova versão. Acabei por demorar vários dias a conseguir alcançar o sucesso da conversão e não pude fazer laboratório ao mundo através da minha janela na América. A resolução do drama só ocorreu com a ajuda de um dos inaptos da nova geração, esses que nasceram depois de 1980, não sabem nada, têm interesses particulares e nem se dão ao trabalho de ter cartão de eleitor. Pois bem, não sabem nada, mas transitaram-me a conta em menos de um minuto, devolveram-me ar para respirar e salvaram este blog da perdição certa.

Se calhar, tenho que reequacionar os meus conceitos geracionais.


PS: A partir da próxima semana abre uma nova rúbrica no arranha-céus chamada Janela com vista. Basicamente serão posts convidados de amigos, companheiros de viagem, de profissão, da blogosfera. Ou outros. Wait and see!

14.2.07

Amor errante

São Valentim o tanas, que nunca gostei deste dia. A obrigação de ir jantar fora, andar de mãos dadas, demonstrar a horas marcadas que gosto de ti. Quando te levei à praia e fiz-te um jantar de vinho e queijos e velas enterradas na areia não era Fevereiro, mas também estava um frio de rachar. Quando fugiamos para fazer amor em sítios improváveis era a espontaneidade que nos fazia rir. Quando combinávamos encontros em países estrangeiros, íamos para a serra admirar paisagens abraçados, quando andávamos a tocar às campaínhas e depois fugir como se fossemos miúdos, era dia dos namorados?

9.2.07

O último round

Estreou ontem «Rocky Balboa», última sequela da saga de Sylvester Stallone sobre um pugilista pobre que trabalha num talho e, ao longo dos anos, iguala o campeão do mundo, depois bate-o, ainda o vinga e salva o mundo da ameaça soviética em dois ou três socos enluvados. Rocky está de volta. Tenham muito medo.

Gosto de passar a noite dos Oscars em claro a estudar reacções de nomeados quando são entregues os prémios [incluindo as categorias a que ninguém liga nenhuma]. Acho inclusivamente que, nos últimos anos, algo mudou em Hollywood. Filmes como o «Crash», o «Lost In Translation» ou o «Magnolia» são hoje alvo de olhares atentos e acumulam estatuetas, quando antes estariam à partida arredados da principal competição. Pode ser culpa do 11 de Setembro. Pode ser que os atentados terroristas tenham posto a América a pensar.

Estive em Hollywood há uns anos, já depois da hecatombe terrorista. Passeios pela Mulholand Drive, copos em Hollywood Boulevard [um concerto no mítico Roxy e, depois disso, um convite para uma festa privada. Champanhe, beautifull people, champanhe], ver as lojas de Rodeo Drive e Beverly Hills e visitar os principais estúdios. No parque de diversões da Universal Studios havia carrocéis do «Jurrasic Park», simulações de ataque do «Tubarão», uma trip em realidade virtual do «Regresso ao Futuro», entre muitas outras emoções fabricadas. Viajava num grupo de jornalistas portugueses e espanhóis. O guia, americano frustrado com um sonho de Hollywood não concretizado, passou-se por não ligarmos nenhuma às principais atracções, mas ficarmos absolutamente tresloucados ao vermos o Motel Bates do «Psycho». E, numa loja, canecas com a silhueta de Rocky, um dos mitos de Hollywood. Goste-se ou não, o filme marcou uma era.

«Rocky» ganhou o Oscar de melhor filme em 1976, ano do meu nascimento. Lamento o facto, sinceramente. Preferia que tivesse sido o «Taxi Driver» ou «Os Homens do Presidente», ambos do mesmo ano [sobretudo o primeiro]. Mas a fórmula de sucesso foi a do pugilista. De certeza por um frase profunda, exclamada em tom guturral, que Stallone inscreveu na memorabilia das citações de Hollywood:

«If I can change, you can change, everybody can change!»

[Tenham muito medo, ele voltou.]

8.2.07

O meu improvável vizinho




O Modigliani mora no meu prédio, e juro que isto é verdade. Eu sei que os livros da Taschen desmentem-me, garantem que o pintor morreu em Paris a 24 de Janeiro de 1920, mas eu tenho provas de que ele vive na América.

Junto à porta de entrada no arranha-céus - dez pisos de laboratório sobre Lisboa - há duas pinturas dele cobertas de tinta cor de tijolo. Pura arte assassinada, disfarçada de parede. Mas esses são só os desenhos escondidos, porque contornando o cubículo do elevador, ainda no exterior do edifício, encontram-se duas mulheres de Modigliani pintadas sobre os caixotes do lixo. Os rostos elípticos e alongados, os cabelos escorridos, linhas simples, de cores equilibradas, nús femininos, os olhos sem pupilas - são cunho do italiano Amedeo.

Nas escadarias que ninguém utiliza há mais exposição artística. A porta do primeiro piso, trancada há anos por uma fechadura sem puxador, tem outra imagem de sedução de Modigliani impressa a óleo na madeira. Por isso é que, quando me sobra tempo, prefiro descer as escadas a pé [descer apenas, porque o décimo piso é voo para as alturas] e cumprimentar as senhoras grafitadas, damas de gestos contidos e formas longas, fidalgas de início de século, que encontro na passada dos degraus. «Bom dia, bom dia», e a fúria renitente das formas a pousarem um esgar no curto encontro do dia.

Calculo que os meus vizinhos prefiram usar o elevador. Mas insisto na descida esforçada, não vão tantas mulheres sentirem-se sozinhas.

6.2.07

Sim!

Hoje pendurei um cartaz do SIM por trás da minha secretária. Ao mesmo tempo, o meu colega Pedro passou uma música no computador dele: «No, no, no, no... you don't love me and I know now». Merda, não há coincidências. À medida que os dias de campanha passam, as sondagens, tal como esperava, estão a aproximar as tendências de voto no referendo sobre a legalização do aborto. Tenho algum receio de que se repita o pesadelo de 1998 e a Igreja consiga exercer o seu lobby injusto ao ponto do referendo não passar. Outra vez.

Uma rapariga que conheço, muito activa numa paróquia lisboeta e que vai votar sim no próximo referendo, foi a uma reunião do Conselho Pastoral onde a ordem de trabalhos era, basicamente, a de lançar uma campanha agressiva pelo não. Ela disse que não queria participar, visto ter uma posição discordante. E, subitamente, o assunto excomunhão veio parar à mesa. Sem forças para lutar, a rapariga cedeu e está agora a fazer campanha pelo não. Mas no dia 11 vai votar sim. Isto é uma violência psicológica atroz [e a maior culpada é ela, que se sujeita a isso].

Este fim de semana, no jornal :2, a Cecília Carmo convidou dois correspondentes estrangeiros em Portugal para comentar o referendo sobre a IVG. Uma tipa da Rádio Paris-Lisbonne, muito digna, e um repórter da TVE, muito parvo. Ela tentou fazer uma abordagem jornalística do tema, sem dar opinião e avaliou o peso da Igreja católica como factor decisivo para o avanço do Não. Ele disse que achava impressionante que esta questão se colocasse na Europa em plena século XXI, que demonstrava alguma tacanhez e provincianismo da sociedade portuguesa e que, em Espanha, a questão já não se colocava.

Concordo com a tipa da Paris-Lisbonne. No entanto, não gosto nada de ouvir a sociedade portuguesa ser chamada de provinciana e tacanha por um cidadão espanhol. A comparação com o seu país de origem é típica - a maior parte dos nossos vizinhos revelam-se egocêntricos inchados sempre que analisam um contexto internacional que não compreendem muito bem. Mas, no fundo, assino por baixo o que ele disse. Muito deste Portugal do Não parece-me pequenino e contido, herdeiro de um salarizarismo que era tudo menos laico, temente, crente, obediente ao senhor cura, «pois ele é que sabe dessas coisas, então!»

Hoje pendurei um cartaz do SIM por trás da minha secretária. E convenci a minha mãe a ir votar [a última vez que o fez foi nas segundas presidenciais do Soares] no domingo. O aborto tem de passar e o país tem de ser menos tacanho. Como disse o irritante jornalista espanhol.

Gira-discos

É curioso como a escrita é um processo unidireccional. Desde que cheguei da Invicta passei os dias de volta de uma reportagem que entreguei ontem e, durante esse tempo, apesar de ter inúmeras ideias para dedilhar no blog, não fui capaz de utilizar um dos hemisférios do cérebro para escrever aqui e o outro para criar o artigo. Das duas uma: ou os meus miolos funcionam em registo mono, ou o esforço de caligrafia é um processo stereo.

Sexta à noite, depois de ir à Luz ver o Benfica sofrer, a Dina levou-me a jantar na Bica e a um concerto no Lounge. Gosto do Lounge, já não punha lá os pés há imenso tempo. Papel de parede rosa, uma bola de espelhos num canto do tecto, as cadeiras e os sofás em estilo sala de espera de aeroporto, regra geral bom som. E, na última visita, casa cheia para assisitir ao espectáculo.

Tocha-Pestana definem-se como um duo ligeira de música electropimba. «Falha no acorde mas acerta no coração» é o lema dos rapazes. A mim, a sonoridade pareceu-me genial. Qualquer coisa entre o retro-punk, o pop-neon e a música de carrinhos de choque. Na voz, textos e efeitos está o Tocha, na guitarra, beats e hits o Pestana. Ambos com cabelos e roupagem ao melhor estilo Toni Silva, o bigodinho da praxe, a postura cantor romântico. E refrões densos: «Plástico é fantástico», «Pratico a minha fé, eu venho ao Cais Sodré», «Lisboa boa» e lírica do género. Fabuloso concerto. Obrigado, Dina.

30.1.07

Taxi Driver

Ainda que me tenha proposto todos os fins de noite que passei no Porto a ir visitar a Casa da Música na manhã seguinte, a verdade é que só observei a estrutura a partir do exterior e nunca consegui pôr um pé lá dentro. Voltarei a 25 de Fevereiro, propositadamente para ver um concerto do McCoy, pianista do Coltrane, e chegarei mais cedo para analisar a arquitectura interior [espero que a Paulinha possa vir comigo ajudar-me a desconstruir os pormenores do edifício].

Regresso a Lisboa e noto logo que aqui em baixo está mais frio. Ou então são as saudades de juntar o quintento maravilha. Eu, o Jordi, a Helena, o Miguel e a Paula quase formámos na Invicta um daqueles grupos de amigos da adolescência que todos os dias vão beber café às nove e meia da noite, só que no nosso caso o encontro era tardio, invariavelmente no Passos Manuel [brilhante bar, onda musical muito parecida ao Incógnito, mas com melhor pinta e sem o D'Artagnan à porta], e faço o destaque a um grande evento que lá se passou este sábado - a Festa Oportunista da Matéria Prima - esquizo qb, com Cure, Smiths e muito eighties em som de fundo, mais uns passos de dança e um barril de cerveja, pelo menos, para cada um.

Quando se conhecem alguns bons portuenses, o Porto pode ser uma experiência fantástica. Não é cidade melosa e envergonhada como Lisboa, embalo feminino, de voz doce mas prudente. É antes rude, com doses idênticas de agressividade e sinceridade, urbe masculina, tão dura quanto acolhedora, é próxima das pessoas, mostra-se em vez de se esconder.

Na quinta passada, quando apanhámos um táxi para a esquina da rua Formosa com a Sá da Bandeira, pedi ao condutor para subir a partir da Praça D. João I porque a rua Passos Manuel estava em obras. Ele pareceu ficar perplexo por um tipo com sotaque lisboeta conhecer a Invicta, o detalhe de uma calçada esburacada, o sentido oportunista do trânsito, da matéria prima. «Bocês son de Lisboua, num son?» Somos sim senhor, não dá para disfarçar. Mas ele gostou que conhecessemos o Porto, falou da família e dos netos, que a mais velha, que tem doze, anda cheia de ciúmes da «canalha de três e quatro anos», que se o Pinto da Costa tiver de ser preso «paciência, o que é preciso é seriedade», mas depois isto parece-lhe uma cabala dos morcões do Sul, «mas sem ofensa. É do Benfica?» Sou. «Eu do Porto, isto é preciso é haver respeito, ou num é?»

E hoje meto-me num táxi para vir à redacção e compreendo de imediato o contraste da história das cidades. O condutor não soltou uma palavra, nem mesmo quando lhe desejei uma boa semana. Estava a fumar cachimbo e, no semáforo do Areeiro, que nem um minuto faz parar o trânsito, abriu um livro de Balzac e pôs-se a lê-lo, ansioso, em ritmo devorador. No leitor de CD's uma sinfonia de Schubert - penso que a número sete, tal a onda dramática - e nem um sorriso no olhar de hábitos intelectuais.

Percebo de imediato que Lisboa é europeia e civilizada, enquanto o Porto é mais provinciano e efusivo. E nisto, dou por mim a olhar para o calendário. A contar os dias para voltar ao Norte.

26.1.07

PKP*

Há uns meses, numa tarde de calor na esplanada do Princípe Real, a Sandra ensaiou um alucínio de génio: ir do Cairo ao Cabo em karaoke. Pegar numa carrinha, enfeitá-la com pinturas de estrelas da música e do cinema, mais umas letras bem berrantes a anunciar o circo cantante, e assim financiar um corte vertical pelo continente africano. Pode ser que funcione, mas é projecto a longo prazo.

Ontem, no Porto, primeiro ensaio. Uma das protagonistas do trabalho que me fez rumar a Norte convidou-nos para um copo. Pensava que íamos a uma das mecas da cidade [o Maus Hábitos, que me foi apresentado pela Paulinha em Novembro, é um must. O Bazaar significa quatro pisos de festa, onda chill out. O Triplex, mais afastado do rio, serve para os dias de soltar conversa], mas afinal o destino era Gaia, um local chamado Vice-Versa, onde decorria a primeira semi-final do sexto concurso de Karaoke da Invicta.

Miraculosamente, encontrámos uma mesa e pedimos imperiais [«finos, carago»]. Estava eu, o Jordi, o Alberto e a Elisabete, que decidiu ir cantar Sara Tavares quando acabou a grande competição. Eu descobri perdido no meio da lista de possibilidades o «Friday I'm Inlove», dos Cure, e decidi subir ao palco. Excelente opção, porque o animador da festa não ligou peva à minha [falta de] qualidade musical e, como adorava a música, ofereceu uma rodada para a nossa mesa. Acho que o Jordi passar a música de braços levantados a gritar «Ricky, Ricky» também ajudou.

No fim da cantoria ofereceu-me um diploma e fez o anúncio oficial: sou karaokista certificado, tenham muito medo. Depois a Elisabete escreveu um poema liiiiiindo no papel - «Acredita em ti e se isso não for suficiente para alguém, então esse alguém não é suficiente para ti!» O Berto deu-me os parabéns, o Jordi esquizofrenou uma dedicatória e ainda apareceu uma tal de Clara que escreveu «Estiveste bem, continua!».

Acho que o próximo passo é África. Do Cairo ao Cabo em karaoke, estou pronto!


PKP* Porto Karaoke Party

23.1.07

Os suspeitos do costume


Agora o Porto, eu e o Jordi, equipa maravilha. À primeira reportagem que fizemos, fomos logo ameaçados com uma pistola ucraniana. À segunda, o purgatório e o paraíso de encontrar um bom ângulo [e a recompensa de publicar a história em França]. A terceira deu livro, a quarta deu prémio, a quinta deu para encontrarmos cavalos selvagens no meio da Galiza e conhecer a inenarrável recepcionista de um inenarrável hotel com escadarias de mármore, neons verdes e paredes cor-de-rosa. Alucínio constante, em cânone desafinado.

Agora o Porto, eu e o Jordi, equipa maravilha. Encontrar histórias em Marraquexe, perdê-las em Ouarzazate, subir a Avenida Florida em Buenos Aires - num fim de noite que marcava três da tarde, com garrafa de vinho e canecas compradas na rua, para a ocasião, voltar do Gerês e aterrar numa festa alucinada no terceiro andar da rua da Barroca, jantar esparguete com atum pelo menos uma vez por semana [uma em cada duas que vou jantar com o catalão], discutir o aborto no 40 e 1, conhecer duas queques no Lux e dizer-lhes que não podiam morar naquele prédio do Siza, então se tinham ar de Curraleira...

Agora o Porto, eu e o Jordi, equipa maravilha. O ritual é sempre o mesmo: viagem em angústia para encontrar uma boa abordagem, uns copos, reportagem, reportagem, reportagem, jantar, conversa de vida profunda, mais reportagem, discussão, «desculpa», «não, eu é que peçoo desculpa», reportagem outra vez, insanidade mental em barda, sempre bons trabalhos. Sair de Lisboa atrasado, excepto agora o Porto, eu e o Jordi, equipa maravilha, porque viemos de comboio e esse não dá para «ir lá só a casa fazer a mala, puto».

Agora no Porto, trabalho é, como sempre, simétrica obsessão para mim e para o catalão despenteado. Sofre-se e supera-se e ambos sabemos que havemos de voltar com a inevitável relíquia de ter encontrado uma bela história. A dificuldade de trabalhar com os amigos é puro mito. Siga a festa.

18.1.07

Prócima Estación: Esperanza

Tínhamos combinado café na Fnac, depois mudámos os planos para a Galeria K, mas ao fim da tarde acabámos no Ágito. Cenário com the famous five - Sophy, Sandra, Jordi, eu e uma botella de Quinta de Cabriz - para matar saudades e combinar revoluções. Depois o catalão maluco zarpou, a Sandra confessou um atraso e a garrafa esvaziou-se. Fiquei eu e a Sophy. «Vamos jantar?»

Ambrósio apetecia-me algo, disse ela, e percebi logo que os tascos do costume não seriam a nossa praia. Sugeri o Buenos Aires, mas a dama contra-argumentou bem: «Abriu um restaurante novo muito cool, tentei ir lá ontem e não havia mesas. Queres tentar?» Quero. Descemos até à rua do Norte e havia mesa para dois no Esperança. Queres comer o quê? Uma garrafa de Malbec, tenho saudades da Argentina.

Espaço intimista, bom atendimento, melhor comida. Gostei do Esperança, está nitdamente on the beat. Deambulámos histórias de reportagens e desamores, pelo meio de esparguete negro e da calzone. Acabou o vinho. Imperial no clube da esquina? Vamos lá. E passamos pelo Beto, claro, temos que lhe ir dar um abraço.

No momento em que entrámos no Calcutá já a sobriedade nos tinha abandonado há muito. Queres uma imperial, perguntei. Não, eu bebo da tua, e a Sophy a agarrar num talher para beber cerveja à colherada. O restaurante estava em obras, o lava loiça no meio da sala dos comensais, a dama a fingir-se de lavadeira. Depois trazem-nos um I-Pod com sonoridade indiana e oiço o comentário feliz da rapariga: «Uau! Música para aumentar a população!» Saímos umas quantas imperiais depois, vá lá que não fomos ao Oslo como de costume, para a Sophy dançar o Dancing Queen e meter conversa com senhoras de vida fácil. Zonzo, levei-a ao táxi e fiquei por momentos na rua com uma obsessão na cabeça:

Porque raio é que eu não tenho amigos normais?