20.12.06

Sobre o aborto

Os duendes do pai Natal são afinal filhos de quem?

19.12.06

Admirável mundo novo

Foi a Catarina que me explicou tudo. Ela ontem estava do lado errado do balcão do espaço 40 e 1 - cá fora a beber copos, em vez de lá dentro a servi-los [lá dentro estava a Sandra, que também explicou uma grande parte da história]. São tão giras. E desvendaram-me um mistério muito maior do que qualquer segredo de Fátima, qualquer triângulo das Bermudas, qualquer Atlântida afogada.

Siga, porque há coisas que não entendemos nas mulheres. As idas em grupo à casa de banho, os segredinhos em plena discoteca, tudo o que cabe numa mala. «Uma mala é passado», explicou a Catarina, «o drama actual de todas as mulheres chama-se o dilema da pochette.»

E contou-me que a pochette é aquela malinha pequena que as mulheres usam para eventos, sair à noite, um jantar de amigos, uma festa ou inauguração. «Passamos horas diante do espelho a escolher o 'modelito' perfeito e, quando finalmente conseguimos, começa o dilema da pochette. Se não combinar com a toilette, temos de mudar de roupa ou pedir uma emprestada à amiga. E recomeça o drama, porque encontrar a pochette perfeita para a roupa ideal é uma tarefa quase impossível.»

Na pochette, explica-me ele, é preciso saber escolher o que levar. «O telemóvel é obrigatório, tal como o gloss para não perder encanto ao longo da noite. Ah, e levas sempre uma daquelas amostras de perfume. Depois, não podes levar a carteira, porque não cabe. Então arranjas uma carteirinha pequenina para levares só o dinheiro e o multibanco.» Tem de caber em cada pochette as chaves de casa ou do carro. «Mas levas só as chaves, nunca o porta-chaves, porque o ursinho, o coraçaozinho ou o bonequinho ocupam demasiado espaço.»

O espaço que sobra, confidencia-me, é ocupado consoante a personalidade da dama. Mas com uma ressalva: tampões e pensos higiénicos devem estar numa bolsa à parte, não vão cair quando se retira alguma coisa da pochette. «As conservadoras levam sempre lenços de papel e Trifene 200. Mas, se foram fumadoras, abdicam dos lenços. Ou então andam com eles na mão.» E as atrevidas? «Um elástico ou um gancho, para prender o cabelo, uma camisinha e a escova de dentes pequenina, para manter o bom hálito Ou então chicletes.»

E ei-las preparadas para uma grande noite, com a pochette [«que agora também se chama clutch», acrescenta a Sandra] debaixo do braço. E aí começa o melodrama seguinte, que é o de não perder a pochette. Como é um objecto pequeno, pode esquecer-se em qualquer lado. Mas também aí, a Catarina tem uma teoria interessante. «Tens que cuidar dela constantemente, tomar conta dela com mil cuidados. Basicamente, a pochette é como um filho.»

...

Admirável.

18.12.06

Cais do Sodré

A primeira vaga do tsunami de 1755 bateu ali, no exacto ponto onde hoje se apanha o barco para Cacilhas. Não havia estação de comboios, claro, nem mercado da Ribeira, muito menos as linhas de eléctrico. Existia apenas um casario desorganizado, bares de marinheiros e muita putaria. Um traço que as ondas do maremoto não conseguiram disfarçar.

Oslo, Tóquio, Jamaica, Texas, Estocolmo, Escandinávia, Europa. São nomes de bares do Cais do Sodré, chamarizes para os que ali chegavam pelo rio. Anunciam num letreiro promessas de matar saudades de casa com copos, corpos, mulheres. Mas também são refúgio de bandidos, esconderijo de conspiradores. O porto de abrigo da cidade que ninguém via, mas toda a gente cheirava.

Sábado à noite durou até domingo, no Cais do Sodré. Desviei a rota do Jamaica de sempre [onde guardo memórias de noites gordas com quase todos os meus amigos] e do Tóquio de muitas vezes [sobretudo vou lá com o Ric, que me convidou para padrinho do seu casamento e contratou o DJ da casa para animar o copo de água].

O Europa reformulou-se. Abre até às 4h30 e novamente às 6h, para after-hours até à hora de almoço. E o Texas já não se chama Texas, agora é Music Box e tem ambiente house. Foi a minha rota da noite, até baterem as onze da matina. Muita dança, mais copos, conversas discretas, encontros inesperados.

O problema é que tinha um almoço no domingo, à uma, com os meus colegas da Faculdade. Adormeci e só acordei ao vigésimo telefonema da Lina, eram quase quatro da tarde. Já tinha conseguido faltar a um lançamento do meu livro. Agora também consegui faltar ao encontro que eu próprio marquei. No primeiro caso, a culpa foi do trabalho. Agora, foi do Cais do Sodré. Shame on me, anyway.

15.12.06

Ponto de encontro

Quando tínhamos 15, 16 anos, viajávamos juntos e os regressos eram feitos a quatro, ou mais, para um meeting place desolado no meio do subúrbio. Eram os dias em que nos encontrávamos ao fim da tarde no Galeão, íamos a casa jantar qualquer coisa e voltavamos a estar juntos à noite - no Paparocas, no café do Daniel e mais tarde no Carujo [foi sempre a piorar, verdade seja dita]. As miúdas marchavam cedo para casa, ficava eu, o Dave, o Guido e o Gouvas, às vezes também o Joel. Íamos jogar cartas [cornélia e olho] para as escadinhas nas traseiras de casa do Guido, enrolar cigarros felizes, beber umas cervejas «mas com cuidado, se os meus pais passarem aí esconde isso, puto.»

Crescemos. O Hugo e a Sofia casaram, a Andreia e a Ana [que faz anos hoje e é um mulheraço] ficaram por Sintra, a Lia pirou-se para Aveiro, depois Lamego, agora Funchal. O Guido também ficou pelo subúrbio, a Vanda mais ou menos. E a Raquel foi para Buenos Aires, o Gouvas para Benguela, a Célia para Formentera, o David para Leiria. Eu na América, com passaporte para viagens constantes. Dispersámo-nos todos, apesar de muitos telefonemas, e-mails, uma ou outra carta.

E quando chega o Natal toda a gente vem a casa. A semana passada apareceu o Dave na varanda do décimo andar. O Gouvas chegou ontem de Angola directo para minha casa. A Célia gostou de lá jantar, tenho a certeza. A Raquel aparece sempre. A Vanda dorme lá muitas vezes, como todos os sem-abrigos do meu grupo de afectos.

Está toda a gente a voltar e quem chega vem para os States. Bem-vindos ao laboratório.

14.12.06

K.[lux]O.

Terça, onze e meia da noite, festa privada no Lux. Dois amigos lançavam um livro sobre fado e eu, apesar de estar totalmente KO, fui lá dar um abraço aos autores. Foi a Alexandra que me convidou e ela, admito, soube seduzir-me, fazer-me vestir o casaco e disfarçar o cansaço:

«Há vinho à borla», disse. «Irrecusável», respondi.

Quando cheguei, o Camané estava em pleno afinanço, num palco improvisado, junto ao bar do primeiro piso. Impressionante. Ainda ouvi a Maria da Fé e o Carlos do Carmo, três faduchos cada, mas depois apareceu a Mariza. A mulher tem uma garra de voz que arrepia a espinha. Ainda por cima, com letras do Ary dos Santos pelo meio e aquele timbre tão sensual.

É fadista de largo espectro, a Mariza, encarnação de Lisboa em corpo de mulher - tão discreta, bela e senhora do seu nariz quanto a luz da cidade.

À saída, percebi que me tinha voltado a reconciliar com o Lux, com quem andava zangado há uns tempos. Eu achava que o maior clube de Lisboa tinha mudado, estava mais deprimido. E, em resposta, o maior clube da cidade atira-me com a primeira noite de fados da sua história e a certeza na voz da Mariza de que à beira do Tejo está tanta Lisboa como na minha janela da América.

12.12.06

Negócio de época

Tenho já seis jantares de Natal marcados, mais um almoço e uma festa de anos. O meu orçamento milionário, afinal, não é assim tão milionário como isso. E o pior é que ainda não comprei prendas.

Em Dezembro, em todos os dezembros, gostava de ser dono de um restaurante.

11.12.06

Vocação de pato bravo

Eu até me considero um gajo de esquerda. E gozo com os gajos do Bloco, apelido-os de esquerda caviar, digo que a Meg e o Bruno é que fazem política a sério, porque vão meter-se no meio daqueles que toda a gente esqueceu. Até que subitamente [ou nem tanto] recebo o subsídio de Natal.

Comprar farpela nova, primeira missão. Andava a precisar de umas calças por isso comprei-as, juntamente com uma camisola, uns boxers e umas meias. Depois perdi-me na Fnac, comprei quatro livros e espero que ninguém mos ofereça no Natal, porque dois já foram devorados de uma ponta à outra, o terceiro vai a meio e o quarto marcha seguramente antes do Natal.

Farto de latas de atum e de ovos como base alimentar, passei no El Corte Inglés e comprei uns artigos de primeira necessidade na loja gourmet. Duas garrafas de Chaminé e uma de Vila Meã são bens que qualquer pessoa de bom gosto precisa de ter em casa, um foie gras e umas tâmaras são produtos essenciais numa cozinha sem frigorífico.

Ontem, decidido a um estilo de vida mais saudável, fui nadar em água quente para disfarçar o frio e a barriga. No fim, quando me decidia a ir para casa cozinhar o jantar - ontem estava home alone - reparei que os meus pés se encaminhavam sozinhos para a avenida de Roma. «Estranho.» Só quando entrei no Magnolia e pedia tosta mais cara lá do sítio é que percebi a minha genuína vocação de Pato Bravo. Genuína, irracional.

O que vale é que encontrei lá a Tânia e a Sara e disfarcei a fleuma com um café.

6.12.06

O Natal em video amador

PAUSE

Na varanda da América é Natal todas as noites. O sistema luminoso da melhor divisão da minha casa é um conjunto de luzes de Natal com decorações de candeeiros japoneses. Advento em versão zen, que permanece o ano inteiro no tecto, a dividir os recantos à luz. Hoje, quando entrei em casa de um amigo, reparei na árvore de Natal que lhe ocupava metade da sala, rodeada de embrulhos bonitos.

REWIND

Lembrei-me de quando era puto e conseguia suster a respiração durante horas sem tirar os olhos dos presentes, homem estátua, quase duende, a contar os dias, a contar as noites, ansioso por abrí-las. Uma vez, eu e o meu irmão mais velho não conseguimos deixar de fazer batota. A minha mãe tinha ido ao senhor Ricardo às compras (o senhor Ricardo era o homem da mercearia, vendia fiado e tinha um bigode mal aparado) e nós abrimos um presente numa das superfícies - «mas só um», avisou o Hugo - para vermos o que era. Descolámos a fita cola, vimos o Castelo do He-Man e abraçámo-nos de alegria. Depois voltámos a fechar o presente, o medo de sermos apanhados por causa da fita cola que já não se sustia, prometemos segredo. Na noite de consoada, enquanto abríamos as prendas, percebi que tinha feito mal em ter feito batota. Não era tanto a prenda que interessava [ainda que aquela estivesse três degraus acima das melhores expectativas], era o magic-moment.

FAST-FORWARD

Há dois anos, quando partilhava o P.Palace com a Vanda e o Gouvas, bateu-nos o espírito numa dessas noites de hoje-jantamos-todos-em-casa. Bem bebidos e melhor fumados, decidimos montar a árvore de Natal - em vez de bolas usámos pais Natal e sinos de chocolate do Lidl - desenhámos um presépio na parede, fizemos decorações para espalhar pela casa, com recortes de papel de lustro e de jornais. Magic-moment em grande moca.

PLAY

Decidi hoje instalar o Natal lá em casa. Como não tenho árvore, vou pendurar bolas coloridas pelos sítios mais improváveis de que me lembrar. E este ano apetece-me fazê-lo sozinho. Vou tentar misturar cd's e estatuetas do Benfica com fitas prateadas. É hoje à noite, não falha.

4.12.06

Danças de salão

O T1, quase T2 por causa da varanda envidraçada, é apesar de tudo pequeno. Na sala mal cabem os livros, o sofá, o puff, os 54 cinzeiros e os 11 quadros. Na cozinha mal cabe um frigorífico e, precisamente por isso, não está lá nenhum. Nas janelas não cabem cordas de roupa, tenho que secar as T-shirts em cima das cadeiras. Na casa de banho não cabem duas pessoas a tomar duche, é uma pena para o romantismo. No quarto não cabem numa só parede os dois óleos que encomendei há uns anos a uma pintora em ascenção.

E, desviando o puff, batendo com os braços nos livros, quase derrubando o televisor, agarro em ti para um valsa improvável, com som de fundo ainda menos previsível. The Verve sugeriria uma polka, no limite um tango. Mas nós valsámos assim, nessa doce esquizofrenia dos fins de semana prolongados, em que rodopiamos, abraçamos, flutuamos com a cidade aos nossos pés - e é então que o espaço se torna tão inútil quanto o tempo.

Se a Baixa se afundasse

As casas da Baixa estão suportadas por estacas de madeira, mergulhadas em água há 251 anos. Se não estivessem submersas, a madeira apodrecederia e a Baixa ruiria, sem apelo nem agravo. Perder-se-ia o palco dos mimos da rua Augusta, o Martinho da Arcada de todas as revoluções, a Fnac, o semanário Sol, a vista do Chapitô, a loja indiana que vende Marlboros à unidade, o postal do arco da rua Augusta e a casa nova do Tiago, num quinto andar sem elevador.

Por outro lado, se a Baixa se afundasse, a maior árvore de Natal da Europa seria engolida pelas águas e acabariam os imbecis engarrafamentos deste fim de semana, com hordas de famílias a percorrerem as estradas suportadas por estacas para ver as decorações luminosas da capital.

...

Não há dúvidas, portanto: afundemos a Baixa.