15.9.09

A memória dos outros



Agradecimentos Sofia Lorena e Tiago Cardoso

2.8.09

Crónica pequeno-portuguesa

Estivemos quase lá.

O largo de Santo Antoninho - mesmo ao fundo da calçada da Bica, à direita para quem desce, onde no número seis, um prédio de três andares, vivem cinco amigos meus distribuídos por três casas diferentes - tinha esta noite cinema ao ar livre. Era uma projecção em película d' A Janela, a ode cinematográfica do Edgar Pêra ao marialva lisboeta, cujo cenário é a Bica em geral e o largo de Santo Antoninho em particular.

Picámos um sushi no segundo piso, com vista para a plateia - umas trinta ou quarenta cadeiras alinhadas diante do ecrã. Quando acabámos de jantar, estava prestes a começar a projecção. E então a família Prudêncio foi ao cinema. Uma litrosa de cerveja, uma mantinha, até um saco de pipocas acabadas de estalar. Começou o filme.

Das colunas saía um som distorcido e, apesar de não se passar nada de errado com a película, certamente havia um problema peliculiar. Os senhores do cinema interromperam o filme e prometeram arranjar o «problema técnico». Dez minutos depois, segunda tentativa. Os meus urros, graves e agudos. Aí, os senhores do cinema prometeram contornar a crise em quinze minutos.

Quinze minutos depois, os senhores do cinema fizeram a terceira tentativa e uma das colunas protestou furiosamente, o que levou ao cancelamento da magnífica noite de cinema ao ar livre da Bica, «é uma falta de respeito para com o filme e para convosco».

Conformámo-nos e pensámos subir ao Bairro, mas acabámos por ficar ali na rua, a beber as imperiais que comprávamos no bar da esquina. Uma boa hora depois, com as cadeiras do largo de Santo Antoninho já todas recolhidas, espanto dos espantos, apareceram na tela as primeiras imagens do filme. E, desta vez, o som era perfeito.
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As condições de visionamento do filme eram fantásticas. Como toda a gente tinha entretanto ido andando, estávamos nós de copo na mão e cigarro na boca, a disfrutar o privilégio de sermos os únicos espectadores da projecção de um filme da Bica, na Bica, para a Bica.

E, aos 16 minutos do filme, os senhores do cinema decidiram pôr termo à projecção, «porque é tarde e não temos licença, pá». Não havia ali polícia, a maior parte dos vizinhos estavam fora de férias, seria extremamente improvável que alguém apresentasse queixa. Já para não dizer que interromper um filme aos 16 minutos é que é uma falta de respeito para com filme. E para connosco, pá.

Então, o Miguel vira-se para mim e interpreta Portugal em duas palavras:
«Gandas meninos!»

25.5.09

Pensamento do dia

A quantidade de trabalho que uma pessoa tem de deixar pronta antes de se ausentar por umas semanas equivale seguramente à quantidade de trabalho que uma pessoa faria se não se ausentasse.

21.5.09

Porque sim



Saudades do Verão. Hoje só oiço isto e o Viva la Vida, dos Coldplay.

18.5.09

Feira do livro

Na sala da minha avó havia quatro quadros de queimadas, um em cada parede. Céu de fogo, até podia ser pôr do sol em África, mas não, era incêndio na jamba. Quatro quadros que, para a minha avó, eram tesouro. Foi o tio Vítor, filho dela, que os trouxe de Angola.

O tio Vítor voltou de Angola com quatro quadros, uma mão à frente, outra atrás. Mas voltou mudado, transdiferente. Vinha mais sorrisos e descontracção, apesar das cuspidelas de retornado que lhe iam atirando.

Casou com a tia Teresa, que nasceu no mato e criou um leopardo quando era minina. E os dois abriram uma discoteca de música africana na margem Sul, primeiro em Sesimbra, agora na Quinta do Conde. Nunca deixaram Angola, porque foi lá que se enfelicizaram. Nos seventies de Luanda, já havia coca-cola e bôites, saía-se à noite, as mulheres fumavam dançavam e usavam mini-saia. Para o tio Vítor, para a tia Teresa, para milhares de outros, aqueles foram os melhores anos.

Um país em guerra, um país em festa. É disso que fala o livro de Ana Sofia Fonseca: Angola, Terra Prometida. Ela, que não nasceu em África, não viveu em África e foi pela primeira vez a Angola para registar as histórias deste livro, não pode ser acusada de parcialidade. Nem de pré-conceitos. Fez um livro sobre os melhores anos desta gente toda. E pronto.

Há histórias de cinema e bailarico, amores e corridas de carros, das sanzalas, das fazendas, da vida que os portugueses deixaram para trás. Do paradoxo de céu iluminado por obuzes e, ao mesmo tempo, por fogo de artifício. Uma crónica dos costumes, magistralmente bem escrita, e que estava por escrever. Podem acusar-me a mim de parcialidade, por ser amigo da autora. Mas leiam lá o livro e depois a gente fala...

27.4.09

Freedom 35+


Impressões do 35º aniversário do 25 de Abril:
. A Paulinha a passar de carro pelo Largo de Camões e a gritar «Viva o Salgueiro Maia!»
. A estranha mood do Tokyo na noite de 24 para 25. O som evoluía do Love Will Tear Us Apart, dos Joy Division, para o Somos Livres [Uma gaivota voava voava, remember?], da Ermelinda Duarte. De arrepiar.
. Quase ninguém sabe a letra completa do Sémen, dos Xutos, que não sendo um hino do 25 de Abril, é sem dúvida uma música de ruptura, um sinal da pequena revolução sexual que em processo em Portugal no ano em que a canção foi escrita [1981].
. No desfile da avenida da Liberdade, os cravos eram vendidos a um euro. Não pelas floristas que se tornaram personagens de Abril, antes pelos Quéfrô paquistaneses [que, graças à abordagem recente, se deviam passar a chamar Quétudo].
. As vendas do Bord'Água atingiram o seu máximo histórico em Lisboa este sábado, nas laterais da avenida da Liberdade.
. A Jaquina, que foi a minha mulher a dias durante anos e que eu não via há muito tempo, desfilou no cortejo de Sintra a exigir a construção de um novo hospital. Dá-lhe Jaca.
. As miúdas mais giras que vão comemorar o 25 de Abril concentram-se normalmente na Praça da Alegria ou no Largo dos Restauradores.
. As vendas de cerveja superaram largamente as vendas de ginjinha na Rua das Portas de Santo Antão.

14.4.09

E, num instante, o mundo mudou (2)

Acordar. Ir buscar um copo de leite à cozinha. Acender um cigarro. Reparar que em cima da mesa da sala ficaram perdidos dois ganchos e um elástico para o cabelo. Pensar fazer um telefonema. Desistir da ideia. Apagar o cigarro. Espreguiçar-me. Começar outro dia.

7.4.09

E, num instante, o mundo mudou (1)

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31.3.09

It's a kind of magic



A realidade supera de longe a ficção. Senão vejam: o meu bom amigo Jordi é fotógrafo e passou vários meses no Brasil a fazer um trabalho sobre mulheres que amam de mais. Encontrou um grupo de interajuda para estas mulheres, que ficaram em cacos, inaptas para o quotidiano, depois das relações que tinham terem terminado. O meu bom amigo Jordi publicou um livro, com textos da jornalista brasileira Marília Gabriela, e fez duas exposições em galerias reputadas de São Paulo. E, há cerca de um mês, o meu bom amigo Jordi voltou a Portugal.

Convidaram-no a expor o trabalho em Lisboa, numa galeria simpática da rua dos Navegantes chamada P4. E o meu bom amigo Jordi convidou-me para escrever o texto da exposição lisboeta. Na boa, não tem problema. Gravou um CD com as imagens e eu fiquei de escrever a coisa. Mas, como estava cheio de trabalho, fui adiando a escrita do texto. Entretanto, eu e o meu bom amigo Jordi fomos para Trás os Montes fazer uma reportagem. É bestial uma pessoa poder trabalhar com os amigos.
No Nordeste, com o prazo para entrega do texto a esgotar-se rapidamente, o meu bom amigo Jordi pediu-me para escrevê-lo ali mesmo. Eu não tinha levado o meu portátil, ele tinha o dele mas não tinha Word. Então, ele passou as imagens da exposição num slide-show em que as imagens mudavam a cada onze segundos. Eu agarrei no meu Moleskine e fui tirando notas. Quando chegasse a Lisboa haveria de as trabalhar e passar a computador, para finalmente enviá-las à galeria.

Guardei as notas no bolso de trás das calças e não voltei a pegar nelas. No último dia, algumas horas depois da hora estipulada como limite para o envio do texto, cliquei no send. Mandei isto:
Amor Cachorro
No dia em que desapareceste eu não conseguia dizer. Tu é que sabias quem eu era. Mergulhei fundo. Fiz-me transparente, transpareci-me. Tu tinhas dito para sempre. Quanto? Morrer, quase. Nem conseguir tirar os olhos do salto da agulha. Cachorro. Deixaste-me encruzilhada, sem direcção. Farejei-me ao espelho, era baço. Reflexo opaco, estou mesmo? Ah, chorei de mais. Foi. E aí eu virei fera. Quis holofote, embriagar-me na luz. Foco na cara, palco no corpo, eu ia ser monarca outra vez. Agora eu vou sair do poço, vou conquistar a noite. Ouviste bem? Vou vingar-me. Ouviste? Fala comigo.

Não pensei mais no assunto e fui à inauguração da exposição do meu bom amigo Jordi. O meu bom amigo Jordi não estava, tinha ido para Angola fotografar. Vi as fotos na parede e gostei muito da disposição. Depois encontrei o dono da galeria, disse-lhe que tinha sido eu a escrever o texto e ele confidenciou-me que ainda não estava exposto porque eu tinha entregue tudo atrasado e a coisa ainda não estava emoldurada. Na boa, não tem problema. Mas porque é que não enviaste antes, perguntou ele. Contei-lhe a saga do computador em Trás os Montes, disse-lhe das notas que tirei e reparei que ainda as tinha no bolso. «Olha, estão aqui, estás a ver?»

E então o tipo passou-se. «Isso é o original, é valiosíssimo. Queres vender-me isso por cinco euros?» Ri-me, disse que lhe oferecia as notas. Mas ele insistiu que não, aquilo era o original e merecia ser pago, nem que fosse por cinco euros. Acedi e vendi-lhe as notas por cinco euros. Agora, na galeria P4, estão expostas as fotografias do meu bom amigo Jordi, o texto que eu enviei com atraso e as notas que eu tirei. Fantástico. Podem confirmar aqui.

25.3.09

O herói do 17

Ai, ai, ai. Eu de manhã não tenho paciência, pelo menos tenho pouca. A Célia, o Gouvas, a Rache, o Guido ou o Dave sabem isso há quase 20 anos. Os meus amigos mais antigos chamavam-me A Besta da alvorada. Só à tarde eu voltava a ser o Riki. Quando acampávamos e algum deles me acordava antes de uma hora que me parecia minimamente razoável, não era pouco frequente eu atirar-lhes um grunhido ou uma bota. Há vinte, há quinze, há dez anos, era A Besta das manhãs. Agora, definitivamente, sou um herói.
Nove da manhã e o despertador retine furiosamente na minha cabeça. Tento fazer uns abdominais para começar o dia - desisto aos 100. Levanto-me, faço a barba, preparo o pequeno almoço e tomo um duche rápido de água fria, porque o esquentador avariou. Esqueço-me de levar o iPod, pelo menos podia disfarçar com soul a alma cinzenta das dez e pouco. Decido-me pela preguiça, melhor apanhar o 17 em vez de ir a pé. Espero cinco minutos e entro no veículo amarelo. Não pago bilhete.
O autocarro está relativamente vazio. Nos lugares reservados às grávidas, idosos e deficientes segue um velhote africano, septuagenário pelo menos, de muletas. Ao lado, nos bancos individuais, duas senhoras coquettes de Alvalade. Atrás, um rapaz dos seus oito anos, pele negra, mochila às costas. E, nos bancos da esquerda, duas mulheres dos seus cinquenta e poucos, que falam alto de mais.
Uma tem óculos de fundo de garrafa, saia com pregas, tornozelos inchados. A outra tem o cabelo oxigenado, brincos à Lola, calças brancas muito justas que lhe caem mal nas ancas disformes. É essa que vai liderando o discurso. E fala assim: «Esta pretalhada e esta ciganada deviam ir prá terra deles. Não vê que eles são muito mais unidos do que os brancos, protegem-se uns aos outros. Eles organizam-nos para nos chatear, é o que é.»
O velho das muletas vira-se para trás com um olhar magoado. O miúdo negro encolhe-se no banco, cheio de vergonha. As senhoras coquettes não conseguem disfarçar o incómodo. Passa a primeira paragem e o discurso da loira oxigenada prossegue inalterado. «Porque os pretos são uma raça que não interessa a ninguém, mas olhe que os ciganos ainda são piores.» A voz é audível em todo o autocarro e ninguém tem oportunidade de não ouvir. Sinto o peito a tremer e, pouco antes da segunda paragem (eu saio à terceira), rebento:
- A senhora desculpe, mas podia falar um pouco mais baixo. Ou então calar-se de vez, é que a sua conversa está-me a incomodar e eu não tenho de a ouvir.
Ela fita-me e, a princípio, sente-se apanhada de surpresa. Mas depois levanta a sobrancelha, põe um ar de mulher das barracas e a mão na anca:
- Ai é? Doi-lhe os ouvidos, é? Doi-lhe os ouvidos?
- Não, não me doem os ouvidos minha senhora. Mas a senhora está a ter uma conversa racista e isso é um crime público. Sabe que eu posso chamar a polícia e a senhora ser detida pelo tipo de conversa que está a ter.
Ela olha para a amiga e grita com um ar trocista:
- Olha, olha, temos doutor! este deve ter a mania que é esperto. Ainda por cima com este ar de xunga. Mas quem é que ele pensa que é para me mandar calar?
Até à terceira paragem, a que eu saio, a mulher vai destilando veneno contra mim. Eu já não a oiço, mas fico contente pelo alvo da sua conversa pavorosa passar a ser eu e não as questões de raça.
Chega a paragem do Areeiro. Preparo-me para sair e o motorista chama-me e faz um sinal com o polegar levantado. O velhote das muletas sai antes de mim, quando passo por ele ele agarra-me o braço e diz: «Muito obrigado, senhor. Eu estava a sentir-me muito mal e o senhor parou com aquela conversa. Muito obrigado.» As velhotas coquettes, que também saíram no Areeiro, acercam-se e dão-me uma palmadinha nas costas: «O senhor esteve muito bem.» E eu acabei por ficar bem-disposto logo pela manhã. Já não sou uma besta, agora sou um herói.

19.3.09

Factos da vida

O número 69 da avenida dos Estados Unidos da América chama-se edifício Califórnia e, numa destas manhãs, estavam dois pombos à entrada do prédio a copular.

9.2.09

Crise de quê?



Em mandarim, a palavra crise é igual a oportunidade.

Dou por mim a pensar que esta crise pode muito bem ser a melhor coisa que já nos aconteceu. Este pode ser o tempo do mérito, finalmente.

Vamos aos factos: somos um povo tramado e queixamo-nos muito. Não conheço um português que não sinta que está subavaliado, mal pago, que ocupa um degrau abaixo da categoria onde devia estar. Muitos terão razão e por isso não se esforçam mais, não facilitam a vida a ninguém, encerram-se na sua amargura e ali permanecem. À espera do dia em que reparem neles e os salvem daquela injustiça.

É a senhora do café que não sabe sorrir, o funcionário do banco que faz questão de falar com autoridade, o professor que insiste em ser tratado com uma deferência tremenda. É o médico que trata mal o doente, a senhora da limpeza que limpa metade e esconde o outro meio debaixo do tapete, o administrador que se rodeia de amigos para nunca ser questionado. Somos nós todos, que contratamos ou tentamos ser contratados com um jeitinho, uma palavrinha, uma referência.

Como é que chegámos aqui? A cumprir serviços mínimos, não é preciso fazer mais se não me pagam para mais. E isso nem é o pior. O pior é pensarmos que a nossa vida está lixada, por isso o melhor é lixar a vida do outro, torcê-lo e rebaixá-lo, para fingir que ele está mais lixado do que nós. E se por acaso o tipo até está a subir na vida, então é lixá-lo pelas costas, porque «esse gajo tem a mania que é bom», «subiu na vida a reboque de alguém». De frente damos-lhe graxa, porque no fundo gostávamos de estar ali. Era ali que queríamos estar. Que, convencemo-nos, merecíamos estar.

E agora a crise lixa-nos mais, deita-nos abaixo, nem sequer as regalias que temos no degrau abaixo que sabemos que ocupamos está garantida. Suspiramos por mais e afinal é menos. Então pode ser que tenhamos de sorrir quando tiramos um café, que facilitemos a vida a quem precisa de uma informação, que ensinemos em vez de querer ser professores.

Intimamente percebemos que, se nos continuamos a lixar assim, então isto fica tudo lixado de vez e daqui ninguém se salva. Se calhar chegou mesmo a hora de trabalhar melhor, produzir mais, ter um melhor desempenho. Porque vem aí o desemprego, a precariedade, a crise.

Esta é, Portugal, a tua oportunidade. Agarra-a. Ou então afoga-te de vez.

7.1.09

Família Prudêncio e o Ano Novo

Éramos cinco pessoas num carro, mais dois gatos e um cão. Ala arriba até ao Douro Internacional, beber paisagem em tragos longos. E depois siga para Espanha, ver uma exposição [tão cultos] a Peñaranda de Bracamonte. Vimos a exposição vimos, encontrámo-nos com mais amigos e logo, logo curtir carrossel. Um bando de marmanjos a gritar à mais pequena curva teve um efeito secundário interessante. A partir deste momento, o carrossel não mais se esvaziou de gente.



E de seguida a família Prudêncio seguiu em excursão para Ciudad Rodrigo, muito por culpa do Rodri, que queria sentir-se em casa. Ainda procurámos uns carrinhos de choque ou umas danças de salão, mas ficámo-nos por um karaoke manhoso, com cinco músicas em inglês, nenhuma em português, demasiadas em castelhano [cantámos o Let it Be e o Asereje]. As raparigas que aparecem ao lado da Ana na imagem convidaram-me para ir ter com elas ao bar em frente, mas tive que recusar. Once a Prudêncio, always a Prudêncio.



E isto é entrar em 2009 em festa.