11.12.07

Última hora


A ASAE decidiu fechar por tempo indeterminado a fábrica de brinquedos do Pai Natal. Às quatro horas da madrugada de ontem, ocorreu a operação Dar nas Vistas, que levou mais de 700 polícias, cães polícias e inspectores de gabardina a uma aldeia perdida da Lapónia.

Além das autoridades terem identificado 14 duendes menores de idade, foram detidos 29 gnomos sem visto de trabalho, oriundos da Turquia, Geórgia e Bielorrússia. O próprio São Nicolau foi acusado de cozinhar bolo-rei com uma colher de pau [que como toda a gente sabe é um atentado às regras de segurança alimentar da União Europeia] e ficou com termo de identidade e residência.

Mary Christmas, a mulher de Santa Claus, ficou detida em prisão preventiva com suspeitas de gerir um discreto bordel de Barbies para lenhadores e condutores de trenó finlandeses. O tribunal decretou que Mary, que em certos meios é conhecida como Madame X, não pode ter direito a fiança.

Entretanto, José Sócrates decidiu abrir um processo disciplinar ao Pai Natal, por ter comentado com um duende infiltrado que o primeiro-ministro português não conseguiria correr, «nem que se esfalfasse todo», a maratona de Ano Novo da Lapónia. O caso já está a ser avaliado pela DREN.

10.12.07

Pretérito perfeito

Por estes dias, Lisboa parece uma obra embargada. Não há luzes de Natal no Rossio, os taipais vanguardistas do Cais da Coluna já pouco disfarçam a inutilidade do Terreiro do Paço, o comércio tradicional recusa abrir portas ao domingo, mesmo que estejamos em período de vendas e as grandes superfícies sejam obrigadas a fechar. Rua Augusta sem mimos. Bairro Alto sem boémios. Nem um grito audível na rua quando o Benfica marca golo.

Pausa, Lisboa em suspenso.

Percorro a rua da Escola Politécnica sem ver vivalma. Ligo para dois ou três amigos, ninguém quer desbravar a urbe. Vou beber um chá, o Cister está fechado. De repente, descubro um tasco que a ASAE ainda não localizou, entro, sento-me, um moscatel. O último fio de luz ilumina o rosto da rapariga que está sentada à minha frente. Não é bonita, mas não consigo desviar os olhos dela. Está mergulhada na penumbra e um clarão de lusco-fusco incendeia-lhe o olho direito. Ela sorri-me, não com os lábios [consigo lá vê-los], mas com pestanas e sobrancelhas.

«Olá Ricardo, lembras-te de mim?»

Susana.
Colega da secundária, na altura uma espécie de cheerleader da turma. Gira, cheia de convicções, um terramoto de 16 anos. Agora aqui, à espera de coisa nenhuma. Os anos arredondaram-lhe o corpo mas preservaram-lhe a luminosidade do esgar. Estava na mesma. E isso significa que não se aparentava com nenhuma imagem que eu pudesse guardar do passado.

Desfiámos meia dúzia de memórias, pedi outro moscatel e ela acompanhou-me. Estava a trabalhar na cimeira, agora vive em Bruxelas, trabalha para a União Europeia. Contei-lhe das pessoas que ia vendo e das que nunca tornei a pôr olho em cima, queixei-me da cidade estar em ruínas e de nenhuma outra capital guardar alma de marinhagem.

Despedimo-nos com trocas de e-mail e promessa de nos mantermos em contacto. E, no exacto momento em que saímos para a rua, acenderam-se, muito embora tivessem forma de laçarotes e fossem de um gosto duvidoso, duas filas inteirinhas de luzes de Natal.

5.12.07

Sobre a bruma


1.
Dou por mim a atravessar a praça da Figueira e percebo que não se vê o outro lado da rua. Sumiu toda a gente, a puta anã, as colegas desta, os polícias da ronda, os taxistas que costumam adormecer na praça. Há um silêncio esmagador em Lisboa desde que esta névoa fenomenal se abateu sobre a cidade. Metrópole sem contornos, desfocada, vazia de gente e repleta de vultos. Dou por mim a pensar que isto não é nada de novo. Uso óculos, caramba. Sem eles, Lisboa é névoa constante.

2.
A minha janela na América oferece moldura sobre urbanidade em frente, grande arquitectura à esquerda, desafogo verde à direita, rio atrás. Mas hoje subi arranha-céus acima e tudo o que vi na pintura foi bruma branca. Ahh... Estou nas nuvens.

3.
Quando estava em Maputo, senti exactamente isto. Também em Londres, uma noite há uns anos. E em Sintra, este fim de semana. A realidade, exterior a nós, prega partidas e obriga a fazer testes. Agora estás sem luz em Moçambique, porque houve um apagão. Sem chapéu de chuva em noite de copioso dilúvio londrino, sem casaco no monte da Lua. Sem ver um palmo à frente do nariz nesta cidade encantada. Avanças e superas-te? Ou escondes-te e resguardas-te?

4.
Venda-me os olhos. Dá-me a mão. Anda.

5.
Como foi acontecer isto? Perdi-me na névoa [terei sido engolido?], deixei de saber onde estava, mergulhei de uma vez por todas na cal etérea das nuvens. Outono em Lisboa, que maravilha. Três da manhã, bem bom. Não vejo nada. E no entanto sinto tudo.