31.3.09

It's a kind of magic



A realidade supera de longe a ficção. Senão vejam: o meu bom amigo Jordi é fotógrafo e passou vários meses no Brasil a fazer um trabalho sobre mulheres que amam de mais. Encontrou um grupo de interajuda para estas mulheres, que ficaram em cacos, inaptas para o quotidiano, depois das relações que tinham terem terminado. O meu bom amigo Jordi publicou um livro, com textos da jornalista brasileira Marília Gabriela, e fez duas exposições em galerias reputadas de São Paulo. E, há cerca de um mês, o meu bom amigo Jordi voltou a Portugal.

Convidaram-no a expor o trabalho em Lisboa, numa galeria simpática da rua dos Navegantes chamada P4. E o meu bom amigo Jordi convidou-me para escrever o texto da exposição lisboeta. Na boa, não tem problema. Gravou um CD com as imagens e eu fiquei de escrever a coisa. Mas, como estava cheio de trabalho, fui adiando a escrita do texto. Entretanto, eu e o meu bom amigo Jordi fomos para Trás os Montes fazer uma reportagem. É bestial uma pessoa poder trabalhar com os amigos.
No Nordeste, com o prazo para entrega do texto a esgotar-se rapidamente, o meu bom amigo Jordi pediu-me para escrevê-lo ali mesmo. Eu não tinha levado o meu portátil, ele tinha o dele mas não tinha Word. Então, ele passou as imagens da exposição num slide-show em que as imagens mudavam a cada onze segundos. Eu agarrei no meu Moleskine e fui tirando notas. Quando chegasse a Lisboa haveria de as trabalhar e passar a computador, para finalmente enviá-las à galeria.

Guardei as notas no bolso de trás das calças e não voltei a pegar nelas. No último dia, algumas horas depois da hora estipulada como limite para o envio do texto, cliquei no send. Mandei isto:
Amor Cachorro
No dia em que desapareceste eu não conseguia dizer. Tu é que sabias quem eu era. Mergulhei fundo. Fiz-me transparente, transpareci-me. Tu tinhas dito para sempre. Quanto? Morrer, quase. Nem conseguir tirar os olhos do salto da agulha. Cachorro. Deixaste-me encruzilhada, sem direcção. Farejei-me ao espelho, era baço. Reflexo opaco, estou mesmo? Ah, chorei de mais. Foi. E aí eu virei fera. Quis holofote, embriagar-me na luz. Foco na cara, palco no corpo, eu ia ser monarca outra vez. Agora eu vou sair do poço, vou conquistar a noite. Ouviste bem? Vou vingar-me. Ouviste? Fala comigo.

Não pensei mais no assunto e fui à inauguração da exposição do meu bom amigo Jordi. O meu bom amigo Jordi não estava, tinha ido para Angola fotografar. Vi as fotos na parede e gostei muito da disposição. Depois encontrei o dono da galeria, disse-lhe que tinha sido eu a escrever o texto e ele confidenciou-me que ainda não estava exposto porque eu tinha entregue tudo atrasado e a coisa ainda não estava emoldurada. Na boa, não tem problema. Mas porque é que não enviaste antes, perguntou ele. Contei-lhe a saga do computador em Trás os Montes, disse-lhe das notas que tirei e reparei que ainda as tinha no bolso. «Olha, estão aqui, estás a ver?»

E então o tipo passou-se. «Isso é o original, é valiosíssimo. Queres vender-me isso por cinco euros?» Ri-me, disse que lhe oferecia as notas. Mas ele insistiu que não, aquilo era o original e merecia ser pago, nem que fosse por cinco euros. Acedi e vendi-lhe as notas por cinco euros. Agora, na galeria P4, estão expostas as fotografias do meu bom amigo Jordi, o texto que eu enviei com atraso e as notas que eu tirei. Fantástico. Podem confirmar aqui.

25.3.09

O herói do 17

Ai, ai, ai. Eu de manhã não tenho paciência, pelo menos tenho pouca. A Célia, o Gouvas, a Rache, o Guido ou o Dave sabem isso há quase 20 anos. Os meus amigos mais antigos chamavam-me A Besta da alvorada. Só à tarde eu voltava a ser o Riki. Quando acampávamos e algum deles me acordava antes de uma hora que me parecia minimamente razoável, não era pouco frequente eu atirar-lhes um grunhido ou uma bota. Há vinte, há quinze, há dez anos, era A Besta das manhãs. Agora, definitivamente, sou um herói.
Nove da manhã e o despertador retine furiosamente na minha cabeça. Tento fazer uns abdominais para começar o dia - desisto aos 100. Levanto-me, faço a barba, preparo o pequeno almoço e tomo um duche rápido de água fria, porque o esquentador avariou. Esqueço-me de levar o iPod, pelo menos podia disfarçar com soul a alma cinzenta das dez e pouco. Decido-me pela preguiça, melhor apanhar o 17 em vez de ir a pé. Espero cinco minutos e entro no veículo amarelo. Não pago bilhete.
O autocarro está relativamente vazio. Nos lugares reservados às grávidas, idosos e deficientes segue um velhote africano, septuagenário pelo menos, de muletas. Ao lado, nos bancos individuais, duas senhoras coquettes de Alvalade. Atrás, um rapaz dos seus oito anos, pele negra, mochila às costas. E, nos bancos da esquerda, duas mulheres dos seus cinquenta e poucos, que falam alto de mais.
Uma tem óculos de fundo de garrafa, saia com pregas, tornozelos inchados. A outra tem o cabelo oxigenado, brincos à Lola, calças brancas muito justas que lhe caem mal nas ancas disformes. É essa que vai liderando o discurso. E fala assim: «Esta pretalhada e esta ciganada deviam ir prá terra deles. Não vê que eles são muito mais unidos do que os brancos, protegem-se uns aos outros. Eles organizam-nos para nos chatear, é o que é.»
O velho das muletas vira-se para trás com um olhar magoado. O miúdo negro encolhe-se no banco, cheio de vergonha. As senhoras coquettes não conseguem disfarçar o incómodo. Passa a primeira paragem e o discurso da loira oxigenada prossegue inalterado. «Porque os pretos são uma raça que não interessa a ninguém, mas olhe que os ciganos ainda são piores.» A voz é audível em todo o autocarro e ninguém tem oportunidade de não ouvir. Sinto o peito a tremer e, pouco antes da segunda paragem (eu saio à terceira), rebento:
- A senhora desculpe, mas podia falar um pouco mais baixo. Ou então calar-se de vez, é que a sua conversa está-me a incomodar e eu não tenho de a ouvir.
Ela fita-me e, a princípio, sente-se apanhada de surpresa. Mas depois levanta a sobrancelha, põe um ar de mulher das barracas e a mão na anca:
- Ai é? Doi-lhe os ouvidos, é? Doi-lhe os ouvidos?
- Não, não me doem os ouvidos minha senhora. Mas a senhora está a ter uma conversa racista e isso é um crime público. Sabe que eu posso chamar a polícia e a senhora ser detida pelo tipo de conversa que está a ter.
Ela olha para a amiga e grita com um ar trocista:
- Olha, olha, temos doutor! este deve ter a mania que é esperto. Ainda por cima com este ar de xunga. Mas quem é que ele pensa que é para me mandar calar?
Até à terceira paragem, a que eu saio, a mulher vai destilando veneno contra mim. Eu já não a oiço, mas fico contente pelo alvo da sua conversa pavorosa passar a ser eu e não as questões de raça.
Chega a paragem do Areeiro. Preparo-me para sair e o motorista chama-me e faz um sinal com o polegar levantado. O velhote das muletas sai antes de mim, quando passo por ele ele agarra-me o braço e diz: «Muito obrigado, senhor. Eu estava a sentir-me muito mal e o senhor parou com aquela conversa. Muito obrigado.» As velhotas coquettes, que também saíram no Areeiro, acercam-se e dão-me uma palmadinha nas costas: «O senhor esteve muito bem.» E eu acabei por ficar bem-disposto logo pela manhã. Já não sou uma besta, agora sou um herói.

19.3.09

Factos da vida

O número 69 da avenida dos Estados Unidos da América chama-se edifício Califórnia e, numa destas manhãs, estavam dois pombos à entrada do prédio a copular.