A realidade supera de longe a ficção. Senão vejam: o meu bom amigo Jordi é fotógrafo e passou vários meses no Brasil a fazer um trabalho sobre mulheres que amam de mais. Encontrou um grupo de interajuda para estas mulheres, que ficaram em cacos, inaptas para o quotidiano, depois das relações que tinham terem terminado. O meu bom amigo Jordi publicou um livro, com textos da jornalista brasileira Marília Gabriela, e fez duas exposições em galerias reputadas de São Paulo. E, há cerca de um mês, o meu bom amigo Jordi voltou a Portugal.
Convidaram-no a expor o trabalho em Lisboa, numa galeria simpática da rua dos Navegantes chamada P4. E o meu bom amigo Jordi convidou-me para escrever o texto da exposição lisboeta. Na boa, não tem problema. Gravou um CD com as imagens e eu fiquei de escrever a coisa. Mas, como estava cheio de trabalho, fui adiando a escrita do texto. Entretanto, eu e o meu bom amigo Jordi fomos para Trás os Montes fazer uma reportagem. É bestial uma pessoa poder trabalhar com os amigos.
No Nordeste, com o prazo para entrega do texto a esgotar-se rapidamente, o meu bom amigo Jordi pediu-me para escrevê-lo ali mesmo. Eu não tinha levado o meu portátil, ele tinha o dele mas não tinha Word. Então, ele passou as imagens da exposição num slide-show em que as imagens mudavam a cada onze segundos. Eu agarrei no meu Moleskine e fui tirando notas. Quando chegasse a Lisboa haveria de as trabalhar e passar a computador, para finalmente enviá-las à galeria.
Guardei as notas no bolso de trás das calças e não voltei a pegar nelas. No último dia, algumas horas depois da hora estipulada como limite para o envio do texto, cliquei no send. Mandei isto:
Amor Cachorro
No dia em que desapareceste eu não conseguia dizer. Tu é que sabias quem eu era. Mergulhei fundo. Fiz-me transparente, transpareci-me. Tu tinhas dito para sempre. Quanto? Morrer, quase. Nem conseguir tirar os olhos do salto da agulha. Cachorro. Deixaste-me encruzilhada, sem direcção. Farejei-me ao espelho, era baço. Reflexo opaco, estou mesmo? Ah, chorei de mais. Foi. E aí eu virei fera. Quis holofote, embriagar-me na luz. Foco na cara, palco no corpo, eu ia ser monarca outra vez. Agora eu vou sair do poço, vou conquistar a noite. Ouviste bem? Vou vingar-me. Ouviste? Fala comigo.
Não pensei mais no assunto e fui à inauguração da exposição do meu bom amigo Jordi. O meu bom amigo Jordi não estava, tinha ido para Angola fotografar. Vi as fotos na parede e gostei muito da disposição. Depois encontrei o dono da galeria, disse-lhe que tinha sido eu a escrever o texto e ele confidenciou-me que ainda não estava exposto porque eu tinha entregue tudo atrasado e a coisa ainda não estava emoldurada. Na boa, não tem problema. Mas porque é que não enviaste antes, perguntou ele. Contei-lhe a saga do computador em Trás os Montes, disse-lhe das notas que tirei e reparei que ainda as tinha no bolso. «Olha, estão aqui, estás a ver?»
E então o tipo passou-se. «Isso é o original, é valiosíssimo. Queres vender-me isso por cinco euros?» Ri-me, disse que lhe oferecia as notas. Mas ele insistiu que não, aquilo era o original e merecia ser pago, nem que fosse por cinco euros. Acedi e vendi-lhe as notas por cinco euros. Agora, na galeria P4, estão expostas as fotografias do meu bom amigo Jordi, o texto que eu enviei com atraso e as notas que eu tirei. Fantástico. Podem confirmar aqui.