Raios partam aquelas pessoas que insistem em ler o extracto da conta em frente à caixa multibanco, os que passam horas à espera numa fila para percorrer a pé o túnel do Marquês, os chico-espertos que fazem sinal de luzes ao carro em frente, quando este está a ultrapassar um camião numa autoestrada, mas são capazes de andar a 20 quilómetros/hora na faixa de aceleração se houver um acidente [nem é preciso tanto, basta uma luz de ambulância ou reboque] em sentido contrário.
Raios partam todos os senhores doutores, engenheiros e arquitectos que não o são e insistem em legitimar-se com um título alheio e impróprio. Raios parta a velha e pequenina geração que insiste na mesquinhez de barrar aos mais novos o acesso aos cargos de decisão e raios partam as novas gerações de pseudo-intelectuais que torcem o nariz à pureza em nome da postura, que se alheiam da «gentinha» e dos seus problemas, que são capazes de olhar para o seu próximo como se ele não existisse - antes para um ponto vago de um horizonte anónimo.
Raios partam as pontes a cair, as cegonhas que embatem em postes e rebentam com metade da rede electrica nacional, raios parta o protocolo de Quioto que nunca mais avança e os terroristas islâmicos e os demagogos americanos e esta mania portuguesa de nos abstrairmos do assunto, como se nada nos disesse respeito.
Esta manhã, quando acordei, estava de azia e com os pés de fora. Rios partam.
30.4.07
27.4.07
Miss D. vai casar
Sentimo-nos um pouco estranhos quando alguém com quem já tivemos uma relação nos anuncia que se vai casar. Miss D. vai casar este domingo. Anunciou-me o facto há já alguns meses, com a maior naturalidade do mundo, e eu aceitei a notícia no mesmo registo. Afinal, tinham passado anos desde que nos enrolámos pela última vez. E não havia de facto qualquer motivo para assim não ser: sempre ficámos amigos [contra todas as probabilidades, verdade seja dita], e, anos mais tarde, quando conheci o homem que este domingo a vai levar ao altar, achei que era um tipo porreiro e calado - com o tempo confirmei a primeira qualidade e ele foi ganhando confiança para alterar a segunda.
Miss D. e eu nunca namorámos, antes envolvemo-nos. Namorei sim com Miss H., que há dias me dizia qualquer coisa como «devia existir uma lei que proibisse os ex-namorados de casar.» Bem, Miss D. vai casar este domingo mas, como nunca foi oficialmente minha namorada, a lei não se aplica. Consigo até sentir-me feliz por ela. Vou aliás estar presente no casamento, no copo de água e até aposto que me vou divertir bastante. Mas não deixo de sentir algo estranho.
Sei que não quero casar, evito os relacionamentos e privilegio os envolvimentos, não me sobram restos da atracção que levou a que um dia eu e Miss D. estivessemos juntos. Mas isto é pura razão, porque emocionalmente dou por mim a pensar em imensos «whatifs». E se tivesse sido eu. E se tivesse sido ela. E se tivessemos sido nós.
Não somos, nunca fomos, nem seremos. Sei-o perfeitamente. Estou feliz por ela, estou feliz por ele. Não queria seguramente que fosse eu a recebê-la no altar e, no entanto, tenho plena consciência que este domingo, durante uma pequena fracção de segundo, hei-de voltar a sentir esta estranheza que agora escrevo. A estranheza inevitavelmente humana de querermos o que não temos e, simultaneamente, não o suportarmos ter.
Miss D. e eu nunca namorámos, antes envolvemo-nos. Namorei sim com Miss H., que há dias me dizia qualquer coisa como «devia existir uma lei que proibisse os ex-namorados de casar.» Bem, Miss D. vai casar este domingo mas, como nunca foi oficialmente minha namorada, a lei não se aplica. Consigo até sentir-me feliz por ela. Vou aliás estar presente no casamento, no copo de água e até aposto que me vou divertir bastante. Mas não deixo de sentir algo estranho.
Sei que não quero casar, evito os relacionamentos e privilegio os envolvimentos, não me sobram restos da atracção que levou a que um dia eu e Miss D. estivessemos juntos. Mas isto é pura razão, porque emocionalmente dou por mim a pensar em imensos «whatifs». E se tivesse sido eu. E se tivesse sido ela. E se tivessemos sido nós.
Não somos, nunca fomos, nem seremos. Sei-o perfeitamente. Estou feliz por ela, estou feliz por ele. Não queria seguramente que fosse eu a recebê-la no altar e, no entanto, tenho plena consciência que este domingo, durante uma pequena fracção de segundo, hei-de voltar a sentir esta estranheza que agora escrevo. A estranheza inevitavelmente humana de querermos o que não temos e, simultaneamente, não o suportarmos ter.
26.4.07
Abril
Descer a avenida da Liberdade, de cravo vermelho numa mão, sozinho. Comover-me com samba de imigrante, fingir que danço enquanto somo os passos descendentes até ao Rossio. Gritar «fascismo nunca mais», «o custo de vida aumenta, o povo não aguenta», olhar nos olhos das velhas - uma, desdentada, ofereceu-me o cravo - e ler-lhes alegria nos olhos. Viva a Liberdade, viva.
Encontrar a Sara de há alguns anos e alguns suspiros, combinar café, resgatar ao passado a química adormecida. Concentrar o Bruno, a Lena, a Meg [onde estava a Inês, que raio?], como fazíamos há dez anos e há cinco e há 13, cantar a Grândola baixinho, o cravo a amachucar-se nos dedos.
Jantar, petiscada, Zé Mário Branco a ecoar pela sala. Discutir a esquerda, a direita, os tortos, o país. Beber JP tinto como se fosse Barca Velha, devorar ovos com farinheira, sala de massa fria, gargalhadas, é Ábril.
25 de Abril sempre!
Encontrar a Sara de há alguns anos e alguns suspiros, combinar café, resgatar ao passado a química adormecida. Concentrar o Bruno, a Lena, a Meg [onde estava a Inês, que raio?], como fazíamos há dez anos e há cinco e há 13, cantar a Grândola baixinho, o cravo a amachucar-se nos dedos.
Jantar, petiscada, Zé Mário Branco a ecoar pela sala. Discutir a esquerda, a direita, os tortos, o país. Beber JP tinto como se fosse Barca Velha, devorar ovos com farinheira, sala de massa fria, gargalhadas, é Ábril.
25 de Abril sempre!
19.4.07
Pavilhão Atlântico
Já passaram sete dias.
Chegar à proa deste barco e ver água em todas as direcções. Tentar adormecer com saltos de montanha russa, mar zangado até Ponta Delgada, brando na travessia para o Faial, de senhoras até Praia da Vitória. Sete dias de atlântico, num camarote com vista para o horizonte eterno, às vezes mais encrespado, outras mais lânguido, azul, cinza, verde. Dentro de um barco, cada homem é uma ilha.
Nasci numa rua do Chiado, entre o Bairro Alto e o Cais Sodré, numa manhã quente de Junho. A minha mãe disse que fui um parto fácil, rápido, parecia ter pressa da travessia da vida. Parido às onze da manhã, prefiro pensar que estava em fim de noite, em vez de início de dia. A visão do Tejo foi o primeiro postal para os meus olhos, lembre-me ou não deles. E voltei a sair rio abaixo noutra sexta solarenga, esta última, com desejo renovado de me testar oceano adentro.
«Existem três raças de homens», disse-me senhor Augusto, o contramestre. «Os vivos, os mortos e os marinheiros.» Caramba. Por estes dias sou a soma das três espécies.
Chegar à proa deste barco e ver água em todas as direcções. Tentar adormecer com saltos de montanha russa, mar zangado até Ponta Delgada, brando na travessia para o Faial, de senhoras até Praia da Vitória. Sete dias de atlântico, num camarote com vista para o horizonte eterno, às vezes mais encrespado, outras mais lânguido, azul, cinza, verde. Dentro de um barco, cada homem é uma ilha.
Nasci numa rua do Chiado, entre o Bairro Alto e o Cais Sodré, numa manhã quente de Junho. A minha mãe disse que fui um parto fácil, rápido, parecia ter pressa da travessia da vida. Parido às onze da manhã, prefiro pensar que estava em fim de noite, em vez de início de dia. A visão do Tejo foi o primeiro postal para os meus olhos, lembre-me ou não deles. E voltei a sair rio abaixo noutra sexta solarenga, esta última, com desejo renovado de me testar oceano adentro.
«Existem três raças de homens», disse-me senhor Augusto, o contramestre. «Os vivos, os mortos e os marinheiros.» Caramba. Por estes dias sou a soma das três espécies.
11.4.07
Tão bom ter telemóvel outra vez
Duas mensagens de Cuba, uma de Angola, um telefonema de Marrocos e outro do Vietname. Viva a globalização!
2.4.07
Hit the road, Jack
Começam os preparativos de viagem. Páscoa na serra da Arada, na semana seguinte embarco para atravessar meio Atlântico, planos com a família Bastos para férias em Odessa e Tiblissi [foram os locais mais weird de que nos conseguimos lembrar]. O arranha-céus é capaz de andar mais calmo, nos próximos dias. Eu, pelo contrário, muito mais agitado. O que é bom.
Quando era miudo e a perspectiva de sair de casa se começava a desenhar, o entusiasmo não me deixava muitas vezes pegar no sono. Para os primeiros acampamentos de Verão fazia a mochila com uma semana de antecedência e depois ficava a olhá-la durante sete-dias-sete, ampliando o factor ansiedade. Hoje, pelo contrário, faço mochila ou mala com meia hora de antecedência e já tenho todos os pormenores encadeados no cérebro. O estojo de higiene primeiro, T-shirts, boxers e meias depois, dois ou três pares de calças, umas camisolas quentes e um impermeável. Ready to go.
A partir dos 17 comecei a ir todos os Verões para França, viver numa comunidade isolada onde se encontrava gente de todo o mundo. Partia normalmente na primeira semana de Agosto, voltava na última e ainda ia a Barcelona ou a Amsterdão antes de voltar para casa. Financiava tudo com dinheiro ganho em Julho, trabalhava na loja do meu pai a acartar máquinas de lavar roupa para quartos pisos sem elevador e pagava assim o bilhete de autocarro. Não era só o bilhete de autocarro: o que eu estava na verdade a pagar era a sensação de partida.
Os anos e o trabalho trouxeram-me muitos quilómetros percorridos. Embarques em aeroportos, portos, carros alugados, estações de comboio. Mas nestes dias que antecedem a viagem tudo permanece na mesma. Borboletas no estômago, um tremelicar agradável, sorrisos para distribuir ao mundo. Costumo dizer que Lisboa é o melhor sítio do mundo para se voltar a casa depois de uma viagem. Sinto isso, tanto quanto me farto da cidade branca se permaneço nela demasiado tempo. Está na hora de ter saudades.
Quando era miudo e a perspectiva de sair de casa se começava a desenhar, o entusiasmo não me deixava muitas vezes pegar no sono. Para os primeiros acampamentos de Verão fazia a mochila com uma semana de antecedência e depois ficava a olhá-la durante sete-dias-sete, ampliando o factor ansiedade. Hoje, pelo contrário, faço mochila ou mala com meia hora de antecedência e já tenho todos os pormenores encadeados no cérebro. O estojo de higiene primeiro, T-shirts, boxers e meias depois, dois ou três pares de calças, umas camisolas quentes e um impermeável. Ready to go.
A partir dos 17 comecei a ir todos os Verões para França, viver numa comunidade isolada onde se encontrava gente de todo o mundo. Partia normalmente na primeira semana de Agosto, voltava na última e ainda ia a Barcelona ou a Amsterdão antes de voltar para casa. Financiava tudo com dinheiro ganho em Julho, trabalhava na loja do meu pai a acartar máquinas de lavar roupa para quartos pisos sem elevador e pagava assim o bilhete de autocarro. Não era só o bilhete de autocarro: o que eu estava na verdade a pagar era a sensação de partida.
Os anos e o trabalho trouxeram-me muitos quilómetros percorridos. Embarques em aeroportos, portos, carros alugados, estações de comboio. Mas nestes dias que antecedem a viagem tudo permanece na mesma. Borboletas no estômago, um tremelicar agradável, sorrisos para distribuir ao mundo. Costumo dizer que Lisboa é o melhor sítio do mundo para se voltar a casa depois de uma viagem. Sinto isso, tanto quanto me farto da cidade branca se permaneço nela demasiado tempo. Está na hora de ter saudades.
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