«Sabias que se chamava Porcalhota», perguntava-me a avó Arlete sobre a Amadora sempre que íamos dar um passeio. Morava ali desde a adolescência da minha mãe, num quinto andar da avenida de Pangim, que fica quatro ruas acima do estádio do Estrela, pertinho das escadas que dão acesso à clínica de Santo António.
«Sabias que se chamava Porcalhota» e eu escangalhava-me a rir, as mãos dadas à avó Arlete e ao avô Armando, enquanto descíamos a Reboleira e seguíamos para a Damaia, depois subiámos a rua para passar a linha de comboio numa fresta da vedação em Santa Cruz, seguíamos então para as portas de Benfica, até à estação, e fazíamos o percurso inverso, caminho de bairros de lata e africanidades, sem medos, apenas afogueados. Só eu queria ir com a avó Arlete e o avô Armando passear, os meus irmãos preferiam ficar a brincar ou a ver desenhos animados. «Sabias?»
O quinto andar na avenida de Pangim tinha as paredes cobertas de tinta de água, era reluzência fora de moda. Verde cueca na casa de banho, azul atlântico na sala, vinho tinto no hall de entrada. Havia o quarto, com mesinhas de cabeceira cheias de Selecções do Reader's Digest e as prateleiras cheias de livros de Agatha Christie e Heinz Konsalik, que a avó Arlete lia de uma ponta à outra religiosamente, e duas casas de banho. Depois existia a sala, a salinha e a sala de costura, onde ela passava noites curvada sobre a velha máquina Singer, cosendo fechos eclair brancos em oleados azuis escuros para fazer sacos de desporto. Na salinha dormíamos nós, sofá cama aberto para mim e o Hugo, o David num colchão pequeno, à sua medida, esparramado no chão. E a sala, interdita à nossa entrada, tinha um quadro de um menino a chorar na parede e uma mesa de mármore no centro [uma vez parti ali a cabeça mas não contei nada à avó Arlete, com medo de represálias por ter entrado na zona proíbida da casa], mais três quadros de uma queimada em África, que o tio Vítor trouxe de Angola. Lá fora um jardim de ervas daninhas onde às vezes encontrava a professora de História do colégio D. Afonso V, a quem chamavamos Escarreta por ter um problema na laringe que a fazia puxar a expectoração a cada cinco minutos de discurso. E a igreja da Reboleira, onde vi os meus avós casarem quando era menino [é caso raro, alguém ir ao casamento dos avós. Mas os meus tinham passado uma vida de união civil e só aos cinquenta anos de parelha se decidiram pelo matrimónio].
Ontem fui ver o Benfica jogar no campo do Estrela da Amadora e depois liguei ao meu pai, era dia dele, para que me apanhasse e fossemos jantar. «Encontramo-nos à porta de casa da avó Arlete, lembras-te onde fica?» Como se algum dia me fosse esquecer... E lá subi as quatro ruas e passei pela igreja onde os meus avós casaram, lá observei meticulosamente os degraus da escadaria que dão acesso à clínica de Santo António, lá me dispus a esperar pelo meu pai diante do quinto andar da avenida de Pangim. E tudo o que antes era território de gigantes agora me parecia pequeno, excepto a memória da avó Arlete, a minha estrela da Amadora, que um dia me fez prometer que haveria de escrever um livro em honra dela e eu cumpri.
Tenho saudades tuas, avó.
20.3.07
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8 comentários:
Snips!!! Que histórias deliciosas…
As marcas que os avós deixem em nós são únicas e inconfundíveis. Também tenho muitas, mas mesmo muitas saudades dos meus avós.
Nas noites estreladas, gosto de olhar o céu, fixar uma estrela e imaginar que são eles que estão lá, sempre a iluminar-mos de uma forma silenciosa.
beijos
Grande.
[O lago dos capuchos no monte da caparaica também é avassaladoramente pequeno comparado com recordações que tenho da minha avó Zá que levava um saco do Pão de Açucar com papos-secos duros para dar aos patos.]
Gostei tanto!!
A minha avó é arisca. Muito arisca.
Agora diz que quer ir ao cinema com a sua neta. Diz que quer, porque quer!
E eu vou, porque vou!
Muito bom este texto sobre nós e os nossos avós! Gostei e amei...
Beijuzzz
Djáli Fields
E o pátio alfacinha dos meus avós, e o sofá de pele branca da minha (outra)avó...
Deixo uma propostas: QUE O BENFICA DEDIQUE O CAMPEONATO A TODOS OS AVÓS!!!
m a r a v i l h o s o!
adorei, uma crónica da alma!
És o maior a escrever recordações, Ricky! E outras coisas mais...
A tua história lembra-me a vó Estina, que morava numa casa com janelas aos corações e fazia o melhor arroz doce do mundo! Que saudades! Beijo grande.
Quando penso nas minhas queridas avós o que me vem à cabeça são os lanches, no tempo em que brincávamos tardes inteiras na rua... A avÓlinda, gulosa, gostava de chá preto com leite mto doce e bolachinhas torradas. A avó Claudina dáva-nos cacau e papo-secos com manteiga. Ainda hoje são os meus lanches preferidos... e tão doce que é recordá-las
Tenho de escrever aqui... cresci na casa da minha avo Zita na av de Pangim... aminha avo eterna!
Sara, hoje em frança
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