20.12.06

Sobre o aborto

Os duendes do pai Natal são afinal filhos de quem?

19.12.06

Admirável mundo novo

Foi a Catarina que me explicou tudo. Ela ontem estava do lado errado do balcão do espaço 40 e 1 - cá fora a beber copos, em vez de lá dentro a servi-los [lá dentro estava a Sandra, que também explicou uma grande parte da história]. São tão giras. E desvendaram-me um mistério muito maior do que qualquer segredo de Fátima, qualquer triângulo das Bermudas, qualquer Atlântida afogada.

Siga, porque há coisas que não entendemos nas mulheres. As idas em grupo à casa de banho, os segredinhos em plena discoteca, tudo o que cabe numa mala. «Uma mala é passado», explicou a Catarina, «o drama actual de todas as mulheres chama-se o dilema da pochette.»

E contou-me que a pochette é aquela malinha pequena que as mulheres usam para eventos, sair à noite, um jantar de amigos, uma festa ou inauguração. «Passamos horas diante do espelho a escolher o 'modelito' perfeito e, quando finalmente conseguimos, começa o dilema da pochette. Se não combinar com a toilette, temos de mudar de roupa ou pedir uma emprestada à amiga. E recomeça o drama, porque encontrar a pochette perfeita para a roupa ideal é uma tarefa quase impossível.»

Na pochette, explica-me ele, é preciso saber escolher o que levar. «O telemóvel é obrigatório, tal como o gloss para não perder encanto ao longo da noite. Ah, e levas sempre uma daquelas amostras de perfume. Depois, não podes levar a carteira, porque não cabe. Então arranjas uma carteirinha pequenina para levares só o dinheiro e o multibanco.» Tem de caber em cada pochette as chaves de casa ou do carro. «Mas levas só as chaves, nunca o porta-chaves, porque o ursinho, o coraçaozinho ou o bonequinho ocupam demasiado espaço.»

O espaço que sobra, confidencia-me, é ocupado consoante a personalidade da dama. Mas com uma ressalva: tampões e pensos higiénicos devem estar numa bolsa à parte, não vão cair quando se retira alguma coisa da pochette. «As conservadoras levam sempre lenços de papel e Trifene 200. Mas, se foram fumadoras, abdicam dos lenços. Ou então andam com eles na mão.» E as atrevidas? «Um elástico ou um gancho, para prender o cabelo, uma camisinha e a escova de dentes pequenina, para manter o bom hálito Ou então chicletes.»

E ei-las preparadas para uma grande noite, com a pochette [«que agora também se chama clutch», acrescenta a Sandra] debaixo do braço. E aí começa o melodrama seguinte, que é o de não perder a pochette. Como é um objecto pequeno, pode esquecer-se em qualquer lado. Mas também aí, a Catarina tem uma teoria interessante. «Tens que cuidar dela constantemente, tomar conta dela com mil cuidados. Basicamente, a pochette é como um filho.»

...

Admirável.

18.12.06

Cais do Sodré

A primeira vaga do tsunami de 1755 bateu ali, no exacto ponto onde hoje se apanha o barco para Cacilhas. Não havia estação de comboios, claro, nem mercado da Ribeira, muito menos as linhas de eléctrico. Existia apenas um casario desorganizado, bares de marinheiros e muita putaria. Um traço que as ondas do maremoto não conseguiram disfarçar.

Oslo, Tóquio, Jamaica, Texas, Estocolmo, Escandinávia, Europa. São nomes de bares do Cais do Sodré, chamarizes para os que ali chegavam pelo rio. Anunciam num letreiro promessas de matar saudades de casa com copos, corpos, mulheres. Mas também são refúgio de bandidos, esconderijo de conspiradores. O porto de abrigo da cidade que ninguém via, mas toda a gente cheirava.

Sábado à noite durou até domingo, no Cais do Sodré. Desviei a rota do Jamaica de sempre [onde guardo memórias de noites gordas com quase todos os meus amigos] e do Tóquio de muitas vezes [sobretudo vou lá com o Ric, que me convidou para padrinho do seu casamento e contratou o DJ da casa para animar o copo de água].

O Europa reformulou-se. Abre até às 4h30 e novamente às 6h, para after-hours até à hora de almoço. E o Texas já não se chama Texas, agora é Music Box e tem ambiente house. Foi a minha rota da noite, até baterem as onze da matina. Muita dança, mais copos, conversas discretas, encontros inesperados.

O problema é que tinha um almoço no domingo, à uma, com os meus colegas da Faculdade. Adormeci e só acordei ao vigésimo telefonema da Lina, eram quase quatro da tarde. Já tinha conseguido faltar a um lançamento do meu livro. Agora também consegui faltar ao encontro que eu próprio marquei. No primeiro caso, a culpa foi do trabalho. Agora, foi do Cais do Sodré. Shame on me, anyway.

15.12.06

Ponto de encontro

Quando tínhamos 15, 16 anos, viajávamos juntos e os regressos eram feitos a quatro, ou mais, para um meeting place desolado no meio do subúrbio. Eram os dias em que nos encontrávamos ao fim da tarde no Galeão, íamos a casa jantar qualquer coisa e voltavamos a estar juntos à noite - no Paparocas, no café do Daniel e mais tarde no Carujo [foi sempre a piorar, verdade seja dita]. As miúdas marchavam cedo para casa, ficava eu, o Dave, o Guido e o Gouvas, às vezes também o Joel. Íamos jogar cartas [cornélia e olho] para as escadinhas nas traseiras de casa do Guido, enrolar cigarros felizes, beber umas cervejas «mas com cuidado, se os meus pais passarem aí esconde isso, puto.»

Crescemos. O Hugo e a Sofia casaram, a Andreia e a Ana [que faz anos hoje e é um mulheraço] ficaram por Sintra, a Lia pirou-se para Aveiro, depois Lamego, agora Funchal. O Guido também ficou pelo subúrbio, a Vanda mais ou menos. E a Raquel foi para Buenos Aires, o Gouvas para Benguela, a Célia para Formentera, o David para Leiria. Eu na América, com passaporte para viagens constantes. Dispersámo-nos todos, apesar de muitos telefonemas, e-mails, uma ou outra carta.

E quando chega o Natal toda a gente vem a casa. A semana passada apareceu o Dave na varanda do décimo andar. O Gouvas chegou ontem de Angola directo para minha casa. A Célia gostou de lá jantar, tenho a certeza. A Raquel aparece sempre. A Vanda dorme lá muitas vezes, como todos os sem-abrigos do meu grupo de afectos.

Está toda a gente a voltar e quem chega vem para os States. Bem-vindos ao laboratório.

14.12.06

K.[lux]O.

Terça, onze e meia da noite, festa privada no Lux. Dois amigos lançavam um livro sobre fado e eu, apesar de estar totalmente KO, fui lá dar um abraço aos autores. Foi a Alexandra que me convidou e ela, admito, soube seduzir-me, fazer-me vestir o casaco e disfarçar o cansaço:

«Há vinho à borla», disse. «Irrecusável», respondi.

Quando cheguei, o Camané estava em pleno afinanço, num palco improvisado, junto ao bar do primeiro piso. Impressionante. Ainda ouvi a Maria da Fé e o Carlos do Carmo, três faduchos cada, mas depois apareceu a Mariza. A mulher tem uma garra de voz que arrepia a espinha. Ainda por cima, com letras do Ary dos Santos pelo meio e aquele timbre tão sensual.

É fadista de largo espectro, a Mariza, encarnação de Lisboa em corpo de mulher - tão discreta, bela e senhora do seu nariz quanto a luz da cidade.

À saída, percebi que me tinha voltado a reconciliar com o Lux, com quem andava zangado há uns tempos. Eu achava que o maior clube de Lisboa tinha mudado, estava mais deprimido. E, em resposta, o maior clube da cidade atira-me com a primeira noite de fados da sua história e a certeza na voz da Mariza de que à beira do Tejo está tanta Lisboa como na minha janela da América.

12.12.06

Negócio de época

Tenho já seis jantares de Natal marcados, mais um almoço e uma festa de anos. O meu orçamento milionário, afinal, não é assim tão milionário como isso. E o pior é que ainda não comprei prendas.

Em Dezembro, em todos os dezembros, gostava de ser dono de um restaurante.

11.12.06

Vocação de pato bravo

Eu até me considero um gajo de esquerda. E gozo com os gajos do Bloco, apelido-os de esquerda caviar, digo que a Meg e o Bruno é que fazem política a sério, porque vão meter-se no meio daqueles que toda a gente esqueceu. Até que subitamente [ou nem tanto] recebo o subsídio de Natal.

Comprar farpela nova, primeira missão. Andava a precisar de umas calças por isso comprei-as, juntamente com uma camisola, uns boxers e umas meias. Depois perdi-me na Fnac, comprei quatro livros e espero que ninguém mos ofereça no Natal, porque dois já foram devorados de uma ponta à outra, o terceiro vai a meio e o quarto marcha seguramente antes do Natal.

Farto de latas de atum e de ovos como base alimentar, passei no El Corte Inglés e comprei uns artigos de primeira necessidade na loja gourmet. Duas garrafas de Chaminé e uma de Vila Meã são bens que qualquer pessoa de bom gosto precisa de ter em casa, um foie gras e umas tâmaras são produtos essenciais numa cozinha sem frigorífico.

Ontem, decidido a um estilo de vida mais saudável, fui nadar em água quente para disfarçar o frio e a barriga. No fim, quando me decidia a ir para casa cozinhar o jantar - ontem estava home alone - reparei que os meus pés se encaminhavam sozinhos para a avenida de Roma. «Estranho.» Só quando entrei no Magnolia e pedia tosta mais cara lá do sítio é que percebi a minha genuína vocação de Pato Bravo. Genuína, irracional.

O que vale é que encontrei lá a Tânia e a Sara e disfarcei a fleuma com um café.

6.12.06

O Natal em video amador

PAUSE

Na varanda da América é Natal todas as noites. O sistema luminoso da melhor divisão da minha casa é um conjunto de luzes de Natal com decorações de candeeiros japoneses. Advento em versão zen, que permanece o ano inteiro no tecto, a dividir os recantos à luz. Hoje, quando entrei em casa de um amigo, reparei na árvore de Natal que lhe ocupava metade da sala, rodeada de embrulhos bonitos.

REWIND

Lembrei-me de quando era puto e conseguia suster a respiração durante horas sem tirar os olhos dos presentes, homem estátua, quase duende, a contar os dias, a contar as noites, ansioso por abrí-las. Uma vez, eu e o meu irmão mais velho não conseguimos deixar de fazer batota. A minha mãe tinha ido ao senhor Ricardo às compras (o senhor Ricardo era o homem da mercearia, vendia fiado e tinha um bigode mal aparado) e nós abrimos um presente numa das superfícies - «mas só um», avisou o Hugo - para vermos o que era. Descolámos a fita cola, vimos o Castelo do He-Man e abraçámo-nos de alegria. Depois voltámos a fechar o presente, o medo de sermos apanhados por causa da fita cola que já não se sustia, prometemos segredo. Na noite de consoada, enquanto abríamos as prendas, percebi que tinha feito mal em ter feito batota. Não era tanto a prenda que interessava [ainda que aquela estivesse três degraus acima das melhores expectativas], era o magic-moment.

FAST-FORWARD

Há dois anos, quando partilhava o P.Palace com a Vanda e o Gouvas, bateu-nos o espírito numa dessas noites de hoje-jantamos-todos-em-casa. Bem bebidos e melhor fumados, decidimos montar a árvore de Natal - em vez de bolas usámos pais Natal e sinos de chocolate do Lidl - desenhámos um presépio na parede, fizemos decorações para espalhar pela casa, com recortes de papel de lustro e de jornais. Magic-moment em grande moca.

PLAY

Decidi hoje instalar o Natal lá em casa. Como não tenho árvore, vou pendurar bolas coloridas pelos sítios mais improváveis de que me lembrar. E este ano apetece-me fazê-lo sozinho. Vou tentar misturar cd's e estatuetas do Benfica com fitas prateadas. É hoje à noite, não falha.

4.12.06

Danças de salão

O T1, quase T2 por causa da varanda envidraçada, é apesar de tudo pequeno. Na sala mal cabem os livros, o sofá, o puff, os 54 cinzeiros e os 11 quadros. Na cozinha mal cabe um frigorífico e, precisamente por isso, não está lá nenhum. Nas janelas não cabem cordas de roupa, tenho que secar as T-shirts em cima das cadeiras. Na casa de banho não cabem duas pessoas a tomar duche, é uma pena para o romantismo. No quarto não cabem numa só parede os dois óleos que encomendei há uns anos a uma pintora em ascenção.

E, desviando o puff, batendo com os braços nos livros, quase derrubando o televisor, agarro em ti para um valsa improvável, com som de fundo ainda menos previsível. The Verve sugeriria uma polka, no limite um tango. Mas nós valsámos assim, nessa doce esquizofrenia dos fins de semana prolongados, em que rodopiamos, abraçamos, flutuamos com a cidade aos nossos pés - e é então que o espaço se torna tão inútil quanto o tempo.

Se a Baixa se afundasse

As casas da Baixa estão suportadas por estacas de madeira, mergulhadas em água há 251 anos. Se não estivessem submersas, a madeira apodrecederia e a Baixa ruiria, sem apelo nem agravo. Perder-se-ia o palco dos mimos da rua Augusta, o Martinho da Arcada de todas as revoluções, a Fnac, o semanário Sol, a vista do Chapitô, a loja indiana que vende Marlboros à unidade, o postal do arco da rua Augusta e a casa nova do Tiago, num quinto andar sem elevador.

Por outro lado, se a Baixa se afundasse, a maior árvore de Natal da Europa seria engolida pelas águas e acabariam os imbecis engarrafamentos deste fim de semana, com hordas de famílias a percorrerem as estradas suportadas por estacas para ver as decorações luminosas da capital.

...

Não há dúvidas, portanto: afundemos a Baixa.

29.11.06

Testosterona

Todos os dias nascem nesta cidade mulheres lindíssimas com mais de 26 anos.

26.11.06

O meu chapeu de chuva

Sábado de inverno, sinto-me senhor quando saio de casa com sobretudo e guarda-chuva. O meu chapéu é daqueles compridos, cabo de madeira e tecido azul escuro, comprado a uma chinesa por cinco euros em dia de temporal. Sábado quase nem choveu, mas eu quis investir-me do meu casaco à Corto Maltese e do tal chapéu, que seguro sempre bem enrolado, pelo meio do cabo, para dar estilo.

Primeiro a Gulbenkian, para ver a lotadíssima exposição do Amadeo. Melhor seguir para o Centro de Arte Moderna e consumir instalações do Cabrita Reis. Mas ou ele me estava a chamar de burro ou de facto não consigo sentir nada a olhar para um molho de tijolos, uma secretária com um bloco de mármore por cima e um conjunto de luzes de cozinha. A arte não deveria ser sensação?

Umas tapas e dois copos de sangria depois, despeço-me dos companheiros de Lisboa e rumo a Sintra. Pouca-terra-pouca-terra e o subúrbio grafitado em espectáculo de janela baça. Próxima estação, saio e dirijo-me ao conforto dos amigos de sempre. Boa janta, bom vinho, livros e filmes na conversa, mais os trabalhos e as deambulações com que queremos presentear o mundo. O contraste entre o frio da serra e calor da conversa é o paralelo perfeito entre os jogos de luz e sombra da serra com luar. Era verão, portanto, mas eu continuava com o meu chapéu de chuva.

Depois o bar da Ana, amiga de há muitos passados, encontrar R&R, umas imperiais com luz ténue, memórias de rituais antigos e um livro lindo que me veio parar às mãos. A edição crítica do Capote em língua inglesa, um ano depois da publicação do "A Sangue Frio", roubado à embaixada americana em Lisboa.

Acabei por ficar a noite toda, com o meu casaco à Corto Maltese, e agora também uma edição crítica sobre o Capote. Acordei e voltei à estação, regresso a Lisboa para noite com amigos urbanos. E, quando começa a chover, apercebo-me que perdi o meu chapéu de chuva azul comprado por cinco euros a uma chinesa na rua, em dia de temporal.

E intimamente calculo que deve haver um sistema transcendental de trocas directas entre chapéus de chuva e emoções fortes. É isso, de certeza.

24.11.06

Anatomia de um Crime

Fim do mês, escasseia o dinheiro. Trinta euros na conta significa apertar o cinto - e tudo por culpa de dois telemóveis perdidos [esquecidos] em Dezembro, repostos com três semanas de diferenças e o merecido sarcasmo da vendedora da Vodafone.

Manhã, passo pelo multibanco para levantar dez euros. Só há notas de 20, peço uma, com recibo, faz favor. O papel não me elucida sobre o saldo disponível, a caixa dá-me dinheiro mas não sabe quanto tenho.

Saio e páro na rua.

Volto atrás.

Introduzo o cartão, marco o código e carrego na tecla dos levantamentos. Cem euros. Espero um segundo. Oiço o barulho mágico das notas a serem contadas. Deseja recibo? Nem pensar, é melhor não abusar da sorte.

Chama-se a isto assaltar um banco, em versão pós-moderna.

23.11.06

Caderneta de cromos

Foi uma semana intensa, pelo Porto e Trás os Montes. Na Invicta fiquei a dormir no 15º piso do edifício mais alto da cidade e, provavelmente por isso, senti vontade de escrever no arranha-céus. Mas não tinha internet nem tempo. Melhor viver que analisar, de qualquer maneira. Grande jantarada em casa da Paula, mais uma ida ao Maus Hábitos e ao Passos Manuel. Noite portuense rules.


Assim que cheguei a Montalegre enfiei-me no «Bar Pub A Noite» com o meu companheiro de viagem. Era noite de karaoke e, após três minutos de hesitações, lá nos pusemos a cantar Paulo de Carvalho e José Cid para uma audiência de características eminentemente rurais [que é como quem diz: um par de cromos a cantar para um bando de labregos]. O resto foi paisagem, boa comida, trabalho e muita conversa.


Chegada a Lisboa, directíssimo para o Jamaica. Home sweet home. Um tipo que trabalha lá na discoteca andava a recolher assinaturas para restaurar o prédio. Obcecado, não largava a caneta e o papel. Ao lado, uma velha loira, de óculos escuros, a dançar como se não houvesse amanhã. A pista era dela. E ainda um tipo do Porto que nos seguiu para o dance floor e me andava a perguntar onde é que podia encontrar umas raparigas de vida fácil. Não se contentava com o Não Sei que lhe atirava e só me largou quando lhe disse: «Sai da porta, vira à direita e segue o teu caminho» [afinal, o Cais Sodré é o Cais Sodré].

Ai, ai, esta cidade é de loucos.

13.11.06

Rio manso

Entre Março e Maio deste ano desdobrei-me em viagens de cacilheiro. Andava em reportagem na Margem Sul e, se bem que podia pedir requisições de táxi na redacção, preferia descer do Principe Real ao Cais Sodré a pé para depois flutuar pelas águas do Tejo até à outra margem.

Apanhava todos os dias o mesmo cacilheiro - o Sintrense - e sorria inevitavelmente a pensar que as tágides me andavam a abensonhar o trabalho. Não fosse eu filho do monte da lua, saloio de gema, serrano por vocação. Não embarcava sempre à mesma hora, mas a verdade é que era sempre o Sintrense que ali estava à minha espera. Como se de profecia ou destino se tratasse.

Uma vez, no regresso, o lusco-fusco manchava o céu com o sol no meio dos dois pilares da ponte. Outra vez, também no regresso, vi o Tejo mar prateado com luar espelhado nele, lua da minha serra a bordo do Sintrense, vagas calmas, embalar doce.

Sábado, dores de estômago, entoxicação alimentar apanhada na véspera, na Cantina do Baldracca com spaguetti alle vongolle. Saí de casa para apanhar o fresco e meti-me no metro para o Cais Sodré. Sentei-me no muro diante das águas, mal-disposto, tristonho. E, diante do Tejo com a lua aparecer, senti-me em casa, como se a minha mãe me fizesse festas quando fui operado à garganta, ou se passasse os dias comigo no hospital daquela vez que caí dum segundo andar e esmigalhei o braço direito.

Quando cheguei a casa, sentia-me muito melhor.

7.11.06

Metafísica dos invertebrados

«Ai, dona Paula, não gosto de moscas.» Sentença proferida por Sandra, empregada do café onde tomo o pequeno-almoço desde que o brasileirinha da padaria ao lado desapareceu de vista.
«As moscas também têm direito à vida», responde a cliente, dona Paula, ajeitando os óculos e encolhendo os ombros. O casaco de pele nunca me deixaria imaginá-la com estatuto de protectora dos animais, mas ela também não tem corpo para dar uma de Cindy Crawford – com fotos semi-explícitas e um cartaz a dizer "I'd rather go naked than wear fur". Deve ser por isso. Pelo corpo, quero eu dizer.

Dona Paula tinha entrado pouco depois de mim, elogiara o novo penteado de Sandra e revoltou-se quando esta pediu um mata-moscas à patroa, ou «uma daquelas máquinas azuis que as queimam.» Tudo por causa de um exemplar, um único, que teimava em andar de volta dos ducheses. «Mas o que é que você tem contra as moscas, Sandra?»

E Sandra explicou que todos os animais têm direito à vida, mas achava que as moscas só traziam doenças e não gostava de as ter de roda de si, ou da sua comida. «Alguma utilidade hão-de ter, senão Deus não as tinha criado», ensaiou a cliente, que indecisa entre o duchese e uma bola de berlim optou pela segunda, a que a mosca tinha rejeitado. «Quem somos nós para decidir se um animal tem ou não direito à vida», inquiriu, «nós também não perguntámos aos animais se nos queriam na Terra.»

Sandra parou para pensar por uns segundos, por fim pegou num pano de loiça. E enxotou a mosca para fora do café.

6.11.06

Capote com moscatel

Sempre que combino café com a jovem estrela catalã da fotografia tuga - e desde que não seja ir jantar a casa de qualquer um dos dois - ele acaba por me arrastar para o sítio de sempre. A Fnac do Chiado tem, no piso de cima, uma cafeteria com janela sobre a cidade, cadeiras confortáveis, proximidade de filmes, livros e músicas.

Sexta, fim de tarde. «Pá, vamos a outro sítio, para variar», proponho. «Não achas que esse sítio bonito se adequa ao nosso estatuto de jovens intelectuais lisboetas», responde. Gargalhada. Pronto, seja, vamos lá.

Cominbamos às sete, por uma vez na vida sou pontual. Dez minutos e dois cafés depois aparece o Tiago, estava de folga. Excelente, a família reunida. Por fim, lá aparece o cromo do catalão. Pede três moscatéis, digo que não quero [ai, ai, a noite anterior]. «Ricky, se não beberes fico ofendido.» Gargalhadas, again.

Lá arranjamos lugar numa mesa, sentamo-nos a devorar cigarros e congeminar revoluções. Foi ali que combinámos todos ir para Buenos Aires, que acertámos os pormenores para os meses que vivemos juntos, que discutimos o livro que editámos, que alucinámos reportagens e viagens para Norte, para Sul ou para parte nenhuma.

A meio da discussão do próximo projecto, começa a projecção do filme «Capote», que vi há meses no cinema. O copo de moscatel termina, pedimos imperiais, e a voz fina do Philip Seymour Hoffman serve de fundo às nossas conspirações. Acertamos pormenores, avançamos datas, fervemos a cabeça com conceitos. No café da Fnac, como sempre, as ideias fluem no piso por cima das artes. E eu com esta mania de topo do mundo.

26.10.06

Rio bravo

Vinham de uma excursão paroquial, ou se calhar de uma daquelas viagens de um dia organizadas pela Junta de Freguesia. Foi há algum tempo, já não me lembro bem. Os meus avós também costumavam frequentar o que chamavam os «passeios». Ir a Badajoz e vir no mesmo dia, com saída às cinco da matina e regresso às tantas da noite. Ou a Vigo. Ou a Fátima.

Eles vinham de Fátima, tinham assistido à missa na capela das aparições, compraram velas e estátuas a comprovar que «em Fátima rezei por ti». Pelos filhos, pelos netos, pelos pais. Também há os que rezaram por «saúdinha é que é preciso», pelas «dores nas cruzes», por «melhoras rápidas». Almoçaram numa cantina que alguém teve a ousadia de apelidar de restaurante, passearam pelas ruas da cidade e combinaram encontrar-se às cinco. Mas só largaram de Fátima às seis da tarde, tiveram que parar numa estação de serviço para avisar – os filhos, os netos, os pais – que iam chegar atrasados. Lá para as nove, talvez.

Às 21h36 chegaram à vila. O largo da Câmara era já ali, passando a ponte.
Nove e trinta e oito, chovia que se fartava. O autocarro começou a atravessar a estrutura velha de pedra e ferro. E de repente o vazio.

Escuro, queda, a água a entrar. Agarra os miúdos, tenta sair daqui, foge. Sabes nadar? A água tem demasiada corrente. Não consigo respirar. Não consigo.

E os corpos arrastados para muito longe, inchados, comida para peixe. Cinquenta e nove mortos, nenhum sobrevivente. Cinco de Março de 2001.

Os seis engenheiros que o Ministério Público acusou de negligência pela queda da Ponte Hintze Ribeiro, em Entre-os-Rios, foram ilibados. Apesar dos avisos do LNEC do mau estado da estrutura e destes terem respondido «isto ainda aguenta».

Há dias em que sinto vergonha de ser português.

24.10.06

Conselho de Anciãos

Há um livro fabuloso de um repórter polaco chamado Riszard Kapuscinki, que passou 30 anos em África a cobrir todas as guerras, conflitos e dramas do continente na altura em que essas guerras, conflitos e dramas estavam no pico da violência. A obra chama-se «Ébano» e deveria ser de leitura obrigatória nos cursos de comunicação social [em vez dos tratados enfadonhos do Paul Ricoeur, que sinceramente nunca me serviram para nada]. Num notável trabalho de minúncia e pormenor, Kapuscinki descontrói a complexa sociedade africana com detalhes deliciosos. Como a casa mais cara da aldeia ser aquela por onde corre uma mínima corrente de ar, como um branco numa povoação negra tem de tolerar ser assaltado, porque é esse o seu papel na comunidade, como um velho é uma personagem que merece respeito, silêncio e atenção profunda - nem que seja para chamar obra dos deuses ruins a um telefone por satélite.

Quando, em qualquer paragem remota de África, se reúne o Conselho de Anciãos, a aldeia permanece em suspenso até que haja uma decisão e, depois, acata a decisão sem nunca a contestar. Os velhos são os sábios, guardiãos da tradição e da magia, analistas das forças da terra.

Ontem, na linha verde do metro, um Conselho de Anciãos ingleses reunia-se na carruagem da frente. Tinham pinta de turistas, seguiam todos sentados, em amena cavaqueira. Até que, na estação dos Anjos, entrou uma grávida muito grávida que pediu para se sentar no lugar de um dos Anciãos ingleses. Incapaz de compreender a língua estranha que ouvia, o Ancião permaneceu imóvel. A grávida muito grávida percebeu a incompreensão e pediu para se sentar mais uma vez, desta feita em língua inglesa. «No way, I arrived first» foi a resposta.
«But your place is reserved for pregnant people, and I wouldn't ask you if I wasn't so tired», ainda contestou a grávida muito grávida, que quase tombava para o chão quando o metro travou bruscamente no Intendente. Mas ficou de pé, sem reposta, e o Ancião inglês virou a cara para o lado [claro que me depois me dirigi ao local e disse ao homem para se levantar imediatamente, com cara enfurecida. Só aí ele acatou a ideia, murmurando frases que não deveriam ser particularmente simpáticas, mas felizmente mantinahm-se incompreensíveis].

Deportamos os Anciãos ingleses para uma aldeia tribal de África durante seis meses ou encerramo-los para o resta da vida na prisão do Tarrafal?

23.10.06

King Size

Os primeiros dias de chuva são mágicos. As gotas a fustigarem a janela num domingo à tarde, eu a enrolar-me no cobertor encarnado [roubei-o à minha avó quando ela morreu], tomar o pequeno almoço na varanda, com a paisagem molhada em fundo e o cheiro do café acabado de fazer.

Ainda enrolado no cobertor, dispenso o banho que tomo todos os dias quando acordo e deixo-me ficar no sofá, a ouvir Dizzie Gillespie e a ler um livro sobre reportagens da New Yorker. Anoitece, a chuva não desarma. Levanto-me para tomar o tal duche, a água ferve-me a pele. Quando termino, o Benfica está a ganhar dois a um e ainda lhe falta marcar um golo.

Saio de casa, subo meia América até Roma. Começo a descer a rua com as lojas fechadas viro à esquerda, rumo ao King. Vejo os cartazes e lembro-me que gosto dos filmes da Sofia Coppola, decido assistir ao Marie Antoinette e desço a escadaria do cinema.

A livraria fechou, já não há Assírio&Alvim para me frustar a falta de dinheiro para comprar mais livros. Mas as críticas às exibições presentes continuam penduradas na parede, fotocópias de jornais que entretêm a espera do último cigarro antes da sessão, a última, são dez da noite.

O velho projeccionista ainda lá está, a afagar a projecção sem máculas da película medíocre. Lá fora, vento e chuva, Outono quase inv[f]ernal. Saio, retomo o caminho da minha América, subo ao décimo andar do arranha-céus de peito cheio.

Lembro-me das sessões no King com os meus colegas de faculdade, com a Raquel, com a Vanda e a Célia - vínhamos propositadamente de Sintra para Roma, apanhávamos o comboio que chegava meia hora antes do filme e voltávamos para a estação assim que a sessão terminava.

Ontem tive um domingo gordo, só para mim, e fui ao King. É como se, de alguma forma, tivesse passado a folga em solidão confortável. Eu, a minha cidade e as memórias dos que comigo partilharam o rei de todos os cinemas.

19.10.06

Lisboa Sound Sistem

Jantar marcado à última da hora com trupe de jornalistas. É curioso, com as mesmas exactas pessoas já se verificaram inúmeras tentativas de jantar, saídas, uns copos – mas acabaram por ser inevitavelmente adiados, anulados, reagendados, apesar de ficar tudo combinado uma semana antes. Ontem, telefonemas com três horas de antecedência e a coisa funcionou na perfeição. Às dez no karaoke chinês.
Já lá tinha ido com a Pats e a sugestão [deveria dizer a culpa] foi dela. Juntaram-se a Lena, o Silvestre e a Cate [uma ode à pontualidade, estes dois últimos]. Pedímos Chao Min de gambas, uns crepes vietnamitas, comemos com talheres. Mas o melhor foi a música de fundo. Numa sala anexa, e com a porta fechada, ouvia-se o canto estridente de uma família chinesa fechada numa sala de karaoke:
«Poing Ton Lááááá
Ling Hua Kaaaa
Ngui Tiiiiinnnn»

Dois dias antes, e como aliás é costume, fui ver o jogo do Benfica ao Lizarran com o Ricardo e o Torcato [melhor nem falar no resultado]. Apanhámos um táxi porque queríamos entrar em estágio [umas cervejas] antes do início da partida. Pois bem, o nosso taxista era uma joia de moço – 60 e tal anos, uma voz serena e o rádio ligado no rosário da Rádio Renascença.
Engoli em seco e não disse nada os primeiros minutos. Mas, na terça-feira, mercê da chuva e da Liga dos Campeões, o trânsito em Lisboa estava caótico. Demorámos uns valentes quinze minutos de «pai nosso que estais no céu» e eu começava a ficar verdadeiramente angustiado «e não nos deixeis cair em tentação», até que acabei por pedir-lhe que ele mudasse o posto «glória ao pai e ao filho e à porra do espírtito santo». O taxista, no entanto, «cheia de graça, senhor é convosco», recusou o pedido porque depois não sabia sintonizar de novo o rádio em tão religiosa estação «como era no princípio, agora e sempre». Pedi para sair do carro. «Amén».

Quão insana pode ser a banda sonora de Lisboa? Karaoke chinês para jantar, o rosário para uma viagem de táxi, já estou à espera que um destes dias me ofereçam Tony Carreira na estação de metro. Adiante, que em minha casa mando eu. Logo, quando estiver a preparar o jantar, vou deixar o Chet Baker ecoar na sala e limpar a alma sonora à cidade.

16.10.06

Sabor a mento

São onze e meia da noite e as 32 cadeiras do Restaurante São Cristovão (na rua com o mesmo nome, Mouraria, Lisboa) estão todas ocupadas. Um dos comensais já tinha cantado o fado, ouviram-se várias mornas de Cabo Verde e Bob Marley também passou por ali, dedilhado nos dedos de Batcha, guitarrista de serviço. De repente, uma mulher aproxima-se limpando as mãos ao avental, sorriso de poucos dentes mas de uma sinceridade desconcertante. E começa a cantar em crioulo: «Mundu, bô ten roladu ku mi num jogu di kabra-séga, sempri ta persigi-m.»
Ela é Mento, ou Maria do Livramento Levy, cabo-verdiana de 56 anos, neta de um judeu, dona do São Cristovão. Abriu as portas do estabelecimento há 27 anos, renovou-o há poucas semanas. No meio do empedrado da Mouraria, criou um espaço para a África Lusófona, com pratos de todas as antigas colónias portuguesas e música do arquipélago onde nasceu. «A nossa clientela tem um terço de portugueses, um terço de africanos e outro terço de turistas estrangeiros. E voltam sempre», solta com uma gargalhada – deliciosa como catchupa.
Mento nasceu na Praia, ilha de Santiago, e aos 19 anos embarcou para Lisboa. «Vim pela aventura, comecei a trabalhar como doméstica. Nessa altura a vida era mais afectuosa, hoje as pessoas estão mais frias, mais stressadas. Aqui não deixamos entrar stress.» Fez do restaurante a sua casa, sala de visitas onde reserva sempre uma mesa para os amigos que chegam sem aviso. O resto é ao estilo de Mento. Beijos e abraços para toda a gente, comida de África, (muitos) copos de grogue e a música das ilhas – nem sempre afinada, mas sempre emocionada.

12.10.06

Apito dourado

Está certo que já não vivo no Principe Real. Tenho saudades, é um facto, e há dias soube-me bem ir lá jantar a casa do J, que também foi a minha casa durante uns meses. O tempo estava simpático e decidi guiar-me a pé pela cidade. Atravessei a avenida de Roma com tempo para observar as lojas e o glamour seventies desse eixo. Velhas coquetes com cães coquetes, betos com penteados betos, mulheres de unhas arranjadas, alfinetes de peito, lenços no pescoço. Um espectáculo para os olhos, pelo menos para os olhos de um outsider.

Subi ao Saldanha, para ver a cidade empresarial com pressa de ir para casa. Homens de fato e gravata, mulheres com saia e casaco, crianças saídas da creche, algumas com bibe, outras com roupa civil e mãos pintadas de caneta de feltro. Desci a Fontes Pereira de Melo, rumo ao Marquês. Reparei no edifício da Tudor que anda a deixar a D louca. Palacete de época prestes a cair aos pedaços, um luxo para os olhos.

Subi da Liberdade directamente para o Príncipe Real, passando a cinemateca e contornando o hotel Altis. No cruzamento da rua da Escola Politécnica com a rua do Arco do Carvalhal costuma estar um polícia sinaleiro a mandar os carros avançar e travar, a fingir que regula o trânsito. Parece que dança com os braços, com as pernas, com o rotdopio de direcções. Lá estava ele.

Esperei junto à passadeira para atravessar e ele apitou para toda a gente parar e deu prioridade ao peão [moi-mêmme]. Quando estava a chegar à outra margem do alcatrão, ouvi outro apito. Virei-me para trás e o polícia estava a olhar para mim. Cumprimentou-me puxando a pala do chapéu para baixo e disse «boa-tarde, como está». Respondi à altura, apesar do espanto. «Bem, obrigado». O tipo do apito dourado tinha-me reconhecido. Após cinco meses a passar diariamente por ele, a atravessar a estrada na passadeira dele, cumprimentou-me como se fossemos velhos conhecidos, vizinhos de bairro, coisa que o valha.

Lisboa é uma cidade tremenda. Do seu ensaio cosmopolita passa facilmente à condição de proximidade. Posso viver nos Estados Unidos, na avenida dos Estados Unidos, mas o polícia do meu bairro é o tipo do apito dourado.

9.10.06

Praça dos sonhos

Rossio, sábado à tarde.

Da esquina da Havaneza há muito que desapareceu o velhote que andava embrulhado numa bandeira do PSD a vender salvação divina com um megafone. Lembro-me que ele gritava «Cristo é pai, Cristo é o caminho» muito antes de terem aparecido em Portugal os cristianismos proféticos da IURD e da Igreja Maná. Foi o primeiro profeta que alguma vez vi e o que mais me impressionou. Agora, no lugar dele está uma mulher com uma banca arrumada numa bandeira do PSD, a vender sonhos sem megafone, livros de auto-ajuda religiosa emoldurados com bandeiras de Portugal.

Adiante, em direcção à rua do Carmo, o vendedor de castanhas de sempre. A dúzia anda cara, há sempre duas ou três castanhas estragadas, mas ele insiste em vender o sonho de um Outono desejado, sem perceber que Lisboa tem saudades do Verão. Na esquina seguinte, o Dona Maria II, sonho nunca concretizado de um verdadeiro teatro nacional. Portas fechadas, mundo privado, distante de todos. Um monumento ao querer ser, à utopia de palco do mundo. Vazio de plateia. Triste como o fado [Venham os actores para a rua, buscar público para dentro da sala].

Na Pastelaria Suíça sonha-se com o charme da Lisboa chic. Homens de todas as cores, mulheres de todas as línguas, Expressos e Sóis a concentrar-lhes o esgar. À noite, em frente à Suíça, há desfile de corpos para vender, mulheres que oferecem carícias, sonhos desvanecidos de prazeres de Outono. Mas agora, que há luz, o Rossio quase parece o coração de uma cidade verdadeiramente cosmopolita.

Mas a Valentim de Carvalho fechou, as multinacionais de salada ocuparam o espaço das chapelarias, as castanhas andam estragadas e o profeta do Rossio morreu. Sonhos perdidos.

Nisto, duas brasileiras passam por mim e comentam uma para a outra:
«Lisboa não tem loja de fantasia.»

Pois não, penso. Os sonhos já não se vendem.

4.10.06

Calvin & Hobbes

O prédio ao lado está em obras. Limpeza de fachada, retoques de pintura, nada que incomode. Já anda assim há pelo menos dois meses, desde que me mudei para os States. Os mesmos dois tipos a acartarem baldes ao som de um transistor parecido com o que a minha mulher a dias usava em casa da minha mãe. Chamava-se Jaca, Joaquina, minhota com muitos anos de Andorra, mulher dura, ralhava connosco até que a levantávamos pelo colo e ela batia-nos a dizer «deslargue-me».
Era sobretudo o meu irmão mais novo quem lhe pegava ao colo. Eu só mandava bocas, às vezes dançava com ela ao som do transistor velho, cinzento, sintonizado nas minhas iniciais [RR]. Não sei porquê, mas quando chegava a casa depois da faculdade, a Jaca costumava estar sempre a limpar o tapete do hall de entrada. A velhota de rabo para o ar, pernas quase estendidas, mãos na carpete. Eu entrava e dizia qualquer coisa digna como um «eh lá, temos festa!» Ela respondia-me menino tenha respeito. Às vezes contestava-a com uma palmada na anca, depois tinha que fugir, ela agarrava numa colher de pau e perseguia-me casa fora. Cenas de violência doméstica.
O transistor da Jaquina debitava horas após horas o jogo da mala, a missa de fim de tarde, a voz do António Sala. E hoje, o transistor dos pedreiros do prédio ao lado entoava Gloria Estefan [!], enquanto os homens trabalhavam.

Foi pouco depois de lhes ter atirado os bons dias que reparei que um deles tinha uma T-shirt da Calvin Klein e o outro usava uma camisa de manga curta, padrão tigresa. Imagem hilariante, duas fashion victims das obras, um Calvin, outro Hobbes. Que imagem tão estranha para começar o dia.

3.10.06

Crónicas de elevador

Vivo nos Estados Unidos. Num décimo andar da Avenida dos Estados Unidos, com vistas largas sobre Lisboa. Um T1 com varanda, antiga casa de porteira convertido em palácio pequeno, mas pleno de estilo. Tem uma parede de vidro, um armário enorme, quatro paredes de tijolo embutido, um poster original de arte de propaganda vietnamita. É assim que eu vivo na América.

O elevador do meu prédio é antigo, anos quarenta, uma porta de abrir e outra de correr, daquelas metálicas. A subida é lenta, vagarosa, e a luz interior só dura um andar e meio. Todos os dias, subo e desço para o topo do mundo como Ulisses, que passou por todas as trevas até concluir a sua Odisseia. Também eu fico calado no escuro, às vezes acendo o isqueiro para afastar fantasmas, até que por fim chego ao décimo piso, rodo a chave de casa e percebo o meu privilégio de arranha-céus. Aqui no alto, Olimpo privado, Lisboa corre de outra forma.

Gente feita carreiro de formigas, automóveis tornados besouros barulhentos, casario que à noite é enxame de pirilampos.

O elevador é um portal que me leva do centro da urbe para o Jardim Zoológico. Bem-vindos à minha janela. Bem-vindos ao laboratório.