29.11.06

Testosterona

Todos os dias nascem nesta cidade mulheres lindíssimas com mais de 26 anos.

26.11.06

O meu chapeu de chuva

Sábado de inverno, sinto-me senhor quando saio de casa com sobretudo e guarda-chuva. O meu chapéu é daqueles compridos, cabo de madeira e tecido azul escuro, comprado a uma chinesa por cinco euros em dia de temporal. Sábado quase nem choveu, mas eu quis investir-me do meu casaco à Corto Maltese e do tal chapéu, que seguro sempre bem enrolado, pelo meio do cabo, para dar estilo.

Primeiro a Gulbenkian, para ver a lotadíssima exposição do Amadeo. Melhor seguir para o Centro de Arte Moderna e consumir instalações do Cabrita Reis. Mas ou ele me estava a chamar de burro ou de facto não consigo sentir nada a olhar para um molho de tijolos, uma secretária com um bloco de mármore por cima e um conjunto de luzes de cozinha. A arte não deveria ser sensação?

Umas tapas e dois copos de sangria depois, despeço-me dos companheiros de Lisboa e rumo a Sintra. Pouca-terra-pouca-terra e o subúrbio grafitado em espectáculo de janela baça. Próxima estação, saio e dirijo-me ao conforto dos amigos de sempre. Boa janta, bom vinho, livros e filmes na conversa, mais os trabalhos e as deambulações com que queremos presentear o mundo. O contraste entre o frio da serra e calor da conversa é o paralelo perfeito entre os jogos de luz e sombra da serra com luar. Era verão, portanto, mas eu continuava com o meu chapéu de chuva.

Depois o bar da Ana, amiga de há muitos passados, encontrar R&R, umas imperiais com luz ténue, memórias de rituais antigos e um livro lindo que me veio parar às mãos. A edição crítica do Capote em língua inglesa, um ano depois da publicação do "A Sangue Frio", roubado à embaixada americana em Lisboa.

Acabei por ficar a noite toda, com o meu casaco à Corto Maltese, e agora também uma edição crítica sobre o Capote. Acordei e voltei à estação, regresso a Lisboa para noite com amigos urbanos. E, quando começa a chover, apercebo-me que perdi o meu chapéu de chuva azul comprado por cinco euros a uma chinesa na rua, em dia de temporal.

E intimamente calculo que deve haver um sistema transcendental de trocas directas entre chapéus de chuva e emoções fortes. É isso, de certeza.

24.11.06

Anatomia de um Crime

Fim do mês, escasseia o dinheiro. Trinta euros na conta significa apertar o cinto - e tudo por culpa de dois telemóveis perdidos [esquecidos] em Dezembro, repostos com três semanas de diferenças e o merecido sarcasmo da vendedora da Vodafone.

Manhã, passo pelo multibanco para levantar dez euros. Só há notas de 20, peço uma, com recibo, faz favor. O papel não me elucida sobre o saldo disponível, a caixa dá-me dinheiro mas não sabe quanto tenho.

Saio e páro na rua.

Volto atrás.

Introduzo o cartão, marco o código e carrego na tecla dos levantamentos. Cem euros. Espero um segundo. Oiço o barulho mágico das notas a serem contadas. Deseja recibo? Nem pensar, é melhor não abusar da sorte.

Chama-se a isto assaltar um banco, em versão pós-moderna.

23.11.06

Caderneta de cromos

Foi uma semana intensa, pelo Porto e Trás os Montes. Na Invicta fiquei a dormir no 15º piso do edifício mais alto da cidade e, provavelmente por isso, senti vontade de escrever no arranha-céus. Mas não tinha internet nem tempo. Melhor viver que analisar, de qualquer maneira. Grande jantarada em casa da Paula, mais uma ida ao Maus Hábitos e ao Passos Manuel. Noite portuense rules.


Assim que cheguei a Montalegre enfiei-me no «Bar Pub A Noite» com o meu companheiro de viagem. Era noite de karaoke e, após três minutos de hesitações, lá nos pusemos a cantar Paulo de Carvalho e José Cid para uma audiência de características eminentemente rurais [que é como quem diz: um par de cromos a cantar para um bando de labregos]. O resto foi paisagem, boa comida, trabalho e muita conversa.


Chegada a Lisboa, directíssimo para o Jamaica. Home sweet home. Um tipo que trabalha lá na discoteca andava a recolher assinaturas para restaurar o prédio. Obcecado, não largava a caneta e o papel. Ao lado, uma velha loira, de óculos escuros, a dançar como se não houvesse amanhã. A pista era dela. E ainda um tipo do Porto que nos seguiu para o dance floor e me andava a perguntar onde é que podia encontrar umas raparigas de vida fácil. Não se contentava com o Não Sei que lhe atirava e só me largou quando lhe disse: «Sai da porta, vira à direita e segue o teu caminho» [afinal, o Cais Sodré é o Cais Sodré].

Ai, ai, esta cidade é de loucos.

13.11.06

Rio manso

Entre Março e Maio deste ano desdobrei-me em viagens de cacilheiro. Andava em reportagem na Margem Sul e, se bem que podia pedir requisições de táxi na redacção, preferia descer do Principe Real ao Cais Sodré a pé para depois flutuar pelas águas do Tejo até à outra margem.

Apanhava todos os dias o mesmo cacilheiro - o Sintrense - e sorria inevitavelmente a pensar que as tágides me andavam a abensonhar o trabalho. Não fosse eu filho do monte da lua, saloio de gema, serrano por vocação. Não embarcava sempre à mesma hora, mas a verdade é que era sempre o Sintrense que ali estava à minha espera. Como se de profecia ou destino se tratasse.

Uma vez, no regresso, o lusco-fusco manchava o céu com o sol no meio dos dois pilares da ponte. Outra vez, também no regresso, vi o Tejo mar prateado com luar espelhado nele, lua da minha serra a bordo do Sintrense, vagas calmas, embalar doce.

Sábado, dores de estômago, entoxicação alimentar apanhada na véspera, na Cantina do Baldracca com spaguetti alle vongolle. Saí de casa para apanhar o fresco e meti-me no metro para o Cais Sodré. Sentei-me no muro diante das águas, mal-disposto, tristonho. E, diante do Tejo com a lua aparecer, senti-me em casa, como se a minha mãe me fizesse festas quando fui operado à garganta, ou se passasse os dias comigo no hospital daquela vez que caí dum segundo andar e esmigalhei o braço direito.

Quando cheguei a casa, sentia-me muito melhor.

7.11.06

Metafísica dos invertebrados

«Ai, dona Paula, não gosto de moscas.» Sentença proferida por Sandra, empregada do café onde tomo o pequeno-almoço desde que o brasileirinha da padaria ao lado desapareceu de vista.
«As moscas também têm direito à vida», responde a cliente, dona Paula, ajeitando os óculos e encolhendo os ombros. O casaco de pele nunca me deixaria imaginá-la com estatuto de protectora dos animais, mas ela também não tem corpo para dar uma de Cindy Crawford – com fotos semi-explícitas e um cartaz a dizer "I'd rather go naked than wear fur". Deve ser por isso. Pelo corpo, quero eu dizer.

Dona Paula tinha entrado pouco depois de mim, elogiara o novo penteado de Sandra e revoltou-se quando esta pediu um mata-moscas à patroa, ou «uma daquelas máquinas azuis que as queimam.» Tudo por causa de um exemplar, um único, que teimava em andar de volta dos ducheses. «Mas o que é que você tem contra as moscas, Sandra?»

E Sandra explicou que todos os animais têm direito à vida, mas achava que as moscas só traziam doenças e não gostava de as ter de roda de si, ou da sua comida. «Alguma utilidade hão-de ter, senão Deus não as tinha criado», ensaiou a cliente, que indecisa entre o duchese e uma bola de berlim optou pela segunda, a que a mosca tinha rejeitado. «Quem somos nós para decidir se um animal tem ou não direito à vida», inquiriu, «nós também não perguntámos aos animais se nos queriam na Terra.»

Sandra parou para pensar por uns segundos, por fim pegou num pano de loiça. E enxotou a mosca para fora do café.

6.11.06

Capote com moscatel

Sempre que combino café com a jovem estrela catalã da fotografia tuga - e desde que não seja ir jantar a casa de qualquer um dos dois - ele acaba por me arrastar para o sítio de sempre. A Fnac do Chiado tem, no piso de cima, uma cafeteria com janela sobre a cidade, cadeiras confortáveis, proximidade de filmes, livros e músicas.

Sexta, fim de tarde. «Pá, vamos a outro sítio, para variar», proponho. «Não achas que esse sítio bonito se adequa ao nosso estatuto de jovens intelectuais lisboetas», responde. Gargalhada. Pronto, seja, vamos lá.

Cominbamos às sete, por uma vez na vida sou pontual. Dez minutos e dois cafés depois aparece o Tiago, estava de folga. Excelente, a família reunida. Por fim, lá aparece o cromo do catalão. Pede três moscatéis, digo que não quero [ai, ai, a noite anterior]. «Ricky, se não beberes fico ofendido.» Gargalhadas, again.

Lá arranjamos lugar numa mesa, sentamo-nos a devorar cigarros e congeminar revoluções. Foi ali que combinámos todos ir para Buenos Aires, que acertámos os pormenores para os meses que vivemos juntos, que discutimos o livro que editámos, que alucinámos reportagens e viagens para Norte, para Sul ou para parte nenhuma.

A meio da discussão do próximo projecto, começa a projecção do filme «Capote», que vi há meses no cinema. O copo de moscatel termina, pedimos imperiais, e a voz fina do Philip Seymour Hoffman serve de fundo às nossas conspirações. Acertamos pormenores, avançamos datas, fervemos a cabeça com conceitos. No café da Fnac, como sempre, as ideias fluem no piso por cima das artes. E eu com esta mania de topo do mundo.