28.2.07

Janela com vista #01 - Filipe Garcia

UM ABRAÇO AO MEU MOTORISTA

O relógio já anunciava um atraso recorde quando saltei da cama. Banho rápido, sem tempo para fazer a barba, café e cigarro no café do senhor António e, só depois, uma desagradável constatação: é dia de chuva molha-parvos. Decidi apanhar um táxi, mas primeiro impunha-se uma corrida pelos MB da zona para encontrar dinheiro. Aos meus ouvidos, os Rolling Stones declaravam-se seguidores do Diabo e marcavam o ritmo da primeira corrida do dia: de um lado para o outro, em busca de uma caixinha mágica, sem fila e sem o sinal que anuncia a impossibilidade de fazer levantamentos.

Entrei no carrinho amarelo e lembrei-me de um post do Ricky Rodriguez. Ouvia-se música sinfónica e entre os dois bancos da frente estava um livro, tão gasto como a camisa de flanela que o meu motorista (soa bem esta frase) vestia, que me alegrou o despertar: Balzac, A comédia Humana.
Nem em Paris ou Londres, onde a escolaridade e o índice de leitura de jornais é dez vezes superior ao nosso, deve ser usual apanhar um taxista – nome que normalmente uso para me referir ao meu motorista – que lê um livro com 3500 personagens.
Para grande pena minha, que gosto de falar de futebol sempre que o Sporting anda pelas ruas da amargura, não houve conversas, mas animei. Gosto de descobrir pequenos sinais de que Lisboa não é a cidade do Não ao Aborto, que não é por aqui que estão os eleitores do Cavaco ou os telespectadores que estão a empurrar o pequeno ditador para o topo da lista dos maiores portugueses. Gosto de me lembrar que foi por aqui que andou Fernando Pessoa, que foram estas ruas que apaixonaram o Wim Wenders e que foi entre as suas ruas que o pequeno ditador, e antes dele a monarquia, foram derrubados. Gosto de Lisboa.

Londres é cinzenta, Paris é iluminada, Berlim é acelerada, Madrid não tem água e Amesterdão tem frio demais. Lisboa pode pagar mal, pode estar cheia de pequenos portugueses e às vezes até pode obrigar a uma fuga rápida para uma praia semi-deserta, mas tem uma capacidade mágica de nos fazer viajar sem sair do local. Descer a encosta do Castelo, subir até ao Bairro Alto para beber a melhor cerveja morta do mundo, ir ao Lux cheirar um bocadinho de Nova Iorque ou correr pela baixa pombalina com os olhos postos no rio são viagens que eu não consigo dispensar. É a cidade onde tanto se pode ouvir o saxofone do John Coltrane em gritos graves ou a mais feliz das composições do Count Basie, é nas suas ruas que tanto se podem cantarolar as mais psicadélicas músicas dos Beatles como relembrar os velhos tempos do liceu Camões ao som dos Nirvana. Uma cidade onde tanto Paredes como o Mário Laginha jogam em casa tinha de ser a minha. É a cidade do meu Benfica. É a cidade onde um taxista, perdão, onde o meu motorista me fez pensar e me animou o dia. Um abraço ao meu motorista.


[O post é do Filipe Garcia. Conheci-o em Ranholas, quando ele chegou à Focus e se sentou à minha frente, na única secretária disponível, e veio pôr em causa o meu estatuto privilegiado de eremita na redacção. Logo nesse dia, ouviu o meu editor gritar comigo porque eu tinha chegado tarde. No dia seguinte, viu-me chegar tarde novamente. E no outro dia também. Percebeu logo o tipo de jagunço que tinha por diante e, provavelmente por isso, lá se foi revelante. O Fil é amante da música, benfiquista convicto, passageiro frequente do Bairro Alto e da blogosfera, homem das letras com veia para a reportagem. E bom amigo, obviamente. É ele que inaugura a nova rúbrica do arranha-céus, Janela com vista, em formato de post convidado. Assim escreve o homem que mais cigarros fumava à chuva, em dias de fecho da revista, no exterior de um edifício espelhado no fim do IC19]

23.2.07

Pensamentos itinerantes

A meio da Avenida Almirante Reis, entre a cervejaria Portugália e o centro comercial com o mesmo nome, há uma espécie de vão de escada onde vivem sete sem-abrigo. Vieram todos do Leste da Europa - cinco ucranianos, dois romenos - e fazem-me pensar se a Cortina de Ferro caiu mesmo ou não foi mais do que a ilusão globalizada de um muro em ruínas. Entraram em Portugal ilegais, trabalharam nas obras com salários vergonhosos e sem regalias sociais, foram despejados das casas que alugaram e partilham aquela aldeia de cartão e plástico mesmo no centro da urbe. Estranha comunidade desolada, quotidianos afogados em solidão, muito vinho a aquecer as noites frias da Lisboa invernal.

O centro comercial Portugália é um cenário tão desolador quanto o da aldeia de cartão e plástico. Lojas vazias, um café decrépito, um cabeleireiro africano escondido na sub-cave, um «Independente» falido no oitavo andar. Mas são vistas estáticas, imutáveis, não fosse o pó que se vai acumulando no interior das montras cheias de coisa nenhuma.

Os sem-abrigo, pelo contrário, são a metáfora da condição nómada da raça humana. Caçadores-recolectores de caixotes de lixo e sobras dos outros, preparados para mudar a localização da tribo assim que o mundo lhes exija que se escondam dos olhares dos outros. E, no fundo, nada os prende. Edificaram uma cidade gasosa no meio da cidade de betão e placa.

Há três ou quatro noites seguidas que não durmo em casa. Ando com uma mochila com o que considero essencial - duas mudas de roupa, escova e pasta de dentes, a cera para o cabelo. Ou seja, ando a fazer o meu próprio ensaio nómada, a dormir em casa de amigas, jantar em casa de amigos, visitar a família, registo non-stop. É um interrail urbano, este. Provocar a sensação das férias [andar, seguir, avançar, não há amarras] em quotidiano de rotinas. Quebrá-las, então, ou simular que sim.

É que entre viver numa aldeia de cartão e plástico no meio da urbe de betão ou sentir-me montra de loja que se enche de pó prefiro a primeira. Sentir-me sem-abrigo, em constante viagem. É o meu defeito de fabrico, o meu erro genético. Ou então é só porque não saio de Portugal há cinco meses.

22.2.07

Rebenta a bolha

Nitidamente sou da geração de 70. E ainda bem, porque eu e os outros da segunda metade da década crescemos com algum do sistema de valores dos tipos que apanharam com o 25 de Abril em cima, mas não nos lixámos tanto como eles [o nacional-porreirismo dos que eram teenagers nos 80's descambou em muita droga, pouca acção, alguma desilusão e um peculiar desconsolo social]. Fomos os últimos a ir brincar «lá para baixo», que é como quem diz na rua - as miúdas a saltar ao elástico, os rapazes a jogar ao guelas, quem tivesse o maior abafador era rei do recreio, todos a partilhar sirumba e futebol humano, escondidas, apanhada, o máta. E fomos os últimos com três disciplinas no 12º ano, a ter que levar aquelas horrorosas sapatilhas brancas para as aulas de educação física, a saber de cor as letras do Zeca Afonso.

O meu irmão mais novo, de 1982, tem uma opinião menos saudosista, zomba do estilo «no meu tempo é que era bom». Diz ele que quem nasceu nos 70's é normalmente «enrezinado», «parece que lhes devem e não lhes pagam». Mas lá admite que somos uma geração equilibrada, os tais que fazem reciclagem, votam, discutem política, cresceram com a obsessão do objectivo de vida e estão mais ou menos cientes de que é preciso tomar opções, definir um rumo. Eles não, são mais go with the flow. «Nós temos mais acesso à informação do que vocês mas somos menos informados em termos gerais, e mais em interesses particulares», sentencia o David. Concordo. E continuo a preferir a idade que tenho.

No entanto, na última semana, estas certezas ficaram subitamente abaladas pela dificuldade em transitar a velha conta de blogger para a nova versão. Acabei por demorar vários dias a conseguir alcançar o sucesso da conversão e não pude fazer laboratório ao mundo através da minha janela na América. A resolução do drama só ocorreu com a ajuda de um dos inaptos da nova geração, esses que nasceram depois de 1980, não sabem nada, têm interesses particulares e nem se dão ao trabalho de ter cartão de eleitor. Pois bem, não sabem nada, mas transitaram-me a conta em menos de um minuto, devolveram-me ar para respirar e salvaram este blog da perdição certa.

Se calhar, tenho que reequacionar os meus conceitos geracionais.


PS: A partir da próxima semana abre uma nova rúbrica no arranha-céus chamada Janela com vista. Basicamente serão posts convidados de amigos, companheiros de viagem, de profissão, da blogosfera. Ou outros. Wait and see!

14.2.07

Amor errante

São Valentim o tanas, que nunca gostei deste dia. A obrigação de ir jantar fora, andar de mãos dadas, demonstrar a horas marcadas que gosto de ti. Quando te levei à praia e fiz-te um jantar de vinho e queijos e velas enterradas na areia não era Fevereiro, mas também estava um frio de rachar. Quando fugiamos para fazer amor em sítios improváveis era a espontaneidade que nos fazia rir. Quando combinávamos encontros em países estrangeiros, íamos para a serra admirar paisagens abraçados, quando andávamos a tocar às campaínhas e depois fugir como se fossemos miúdos, era dia dos namorados?

9.2.07

O último round

Estreou ontem «Rocky Balboa», última sequela da saga de Sylvester Stallone sobre um pugilista pobre que trabalha num talho e, ao longo dos anos, iguala o campeão do mundo, depois bate-o, ainda o vinga e salva o mundo da ameaça soviética em dois ou três socos enluvados. Rocky está de volta. Tenham muito medo.

Gosto de passar a noite dos Oscars em claro a estudar reacções de nomeados quando são entregues os prémios [incluindo as categorias a que ninguém liga nenhuma]. Acho inclusivamente que, nos últimos anos, algo mudou em Hollywood. Filmes como o «Crash», o «Lost In Translation» ou o «Magnolia» são hoje alvo de olhares atentos e acumulam estatuetas, quando antes estariam à partida arredados da principal competição. Pode ser culpa do 11 de Setembro. Pode ser que os atentados terroristas tenham posto a América a pensar.

Estive em Hollywood há uns anos, já depois da hecatombe terrorista. Passeios pela Mulholand Drive, copos em Hollywood Boulevard [um concerto no mítico Roxy e, depois disso, um convite para uma festa privada. Champanhe, beautifull people, champanhe], ver as lojas de Rodeo Drive e Beverly Hills e visitar os principais estúdios. No parque de diversões da Universal Studios havia carrocéis do «Jurrasic Park», simulações de ataque do «Tubarão», uma trip em realidade virtual do «Regresso ao Futuro», entre muitas outras emoções fabricadas. Viajava num grupo de jornalistas portugueses e espanhóis. O guia, americano frustrado com um sonho de Hollywood não concretizado, passou-se por não ligarmos nenhuma às principais atracções, mas ficarmos absolutamente tresloucados ao vermos o Motel Bates do «Psycho». E, numa loja, canecas com a silhueta de Rocky, um dos mitos de Hollywood. Goste-se ou não, o filme marcou uma era.

«Rocky» ganhou o Oscar de melhor filme em 1976, ano do meu nascimento. Lamento o facto, sinceramente. Preferia que tivesse sido o «Taxi Driver» ou «Os Homens do Presidente», ambos do mesmo ano [sobretudo o primeiro]. Mas a fórmula de sucesso foi a do pugilista. De certeza por um frase profunda, exclamada em tom guturral, que Stallone inscreveu na memorabilia das citações de Hollywood:

«If I can change, you can change, everybody can change!»

[Tenham muito medo, ele voltou.]

8.2.07

O meu improvável vizinho




O Modigliani mora no meu prédio, e juro que isto é verdade. Eu sei que os livros da Taschen desmentem-me, garantem que o pintor morreu em Paris a 24 de Janeiro de 1920, mas eu tenho provas de que ele vive na América.

Junto à porta de entrada no arranha-céus - dez pisos de laboratório sobre Lisboa - há duas pinturas dele cobertas de tinta cor de tijolo. Pura arte assassinada, disfarçada de parede. Mas esses são só os desenhos escondidos, porque contornando o cubículo do elevador, ainda no exterior do edifício, encontram-se duas mulheres de Modigliani pintadas sobre os caixotes do lixo. Os rostos elípticos e alongados, os cabelos escorridos, linhas simples, de cores equilibradas, nús femininos, os olhos sem pupilas - são cunho do italiano Amedeo.

Nas escadarias que ninguém utiliza há mais exposição artística. A porta do primeiro piso, trancada há anos por uma fechadura sem puxador, tem outra imagem de sedução de Modigliani impressa a óleo na madeira. Por isso é que, quando me sobra tempo, prefiro descer as escadas a pé [descer apenas, porque o décimo piso é voo para as alturas] e cumprimentar as senhoras grafitadas, damas de gestos contidos e formas longas, fidalgas de início de século, que encontro na passada dos degraus. «Bom dia, bom dia», e a fúria renitente das formas a pousarem um esgar no curto encontro do dia.

Calculo que os meus vizinhos prefiram usar o elevador. Mas insisto na descida esforçada, não vão tantas mulheres sentirem-se sozinhas.

6.2.07

Sim!

Hoje pendurei um cartaz do SIM por trás da minha secretária. Ao mesmo tempo, o meu colega Pedro passou uma música no computador dele: «No, no, no, no... you don't love me and I know now». Merda, não há coincidências. À medida que os dias de campanha passam, as sondagens, tal como esperava, estão a aproximar as tendências de voto no referendo sobre a legalização do aborto. Tenho algum receio de que se repita o pesadelo de 1998 e a Igreja consiga exercer o seu lobby injusto ao ponto do referendo não passar. Outra vez.

Uma rapariga que conheço, muito activa numa paróquia lisboeta e que vai votar sim no próximo referendo, foi a uma reunião do Conselho Pastoral onde a ordem de trabalhos era, basicamente, a de lançar uma campanha agressiva pelo não. Ela disse que não queria participar, visto ter uma posição discordante. E, subitamente, o assunto excomunhão veio parar à mesa. Sem forças para lutar, a rapariga cedeu e está agora a fazer campanha pelo não. Mas no dia 11 vai votar sim. Isto é uma violência psicológica atroz [e a maior culpada é ela, que se sujeita a isso].

Este fim de semana, no jornal :2, a Cecília Carmo convidou dois correspondentes estrangeiros em Portugal para comentar o referendo sobre a IVG. Uma tipa da Rádio Paris-Lisbonne, muito digna, e um repórter da TVE, muito parvo. Ela tentou fazer uma abordagem jornalística do tema, sem dar opinião e avaliou o peso da Igreja católica como factor decisivo para o avanço do Não. Ele disse que achava impressionante que esta questão se colocasse na Europa em plena século XXI, que demonstrava alguma tacanhez e provincianismo da sociedade portuguesa e que, em Espanha, a questão já não se colocava.

Concordo com a tipa da Paris-Lisbonne. No entanto, não gosto nada de ouvir a sociedade portuguesa ser chamada de provinciana e tacanha por um cidadão espanhol. A comparação com o seu país de origem é típica - a maior parte dos nossos vizinhos revelam-se egocêntricos inchados sempre que analisam um contexto internacional que não compreendem muito bem. Mas, no fundo, assino por baixo o que ele disse. Muito deste Portugal do Não parece-me pequenino e contido, herdeiro de um salarizarismo que era tudo menos laico, temente, crente, obediente ao senhor cura, «pois ele é que sabe dessas coisas, então!»

Hoje pendurei um cartaz do SIM por trás da minha secretária. E convenci a minha mãe a ir votar [a última vez que o fez foi nas segundas presidenciais do Soares] no domingo. O aborto tem de passar e o país tem de ser menos tacanho. Como disse o irritante jornalista espanhol.

Gira-discos

É curioso como a escrita é um processo unidireccional. Desde que cheguei da Invicta passei os dias de volta de uma reportagem que entreguei ontem e, durante esse tempo, apesar de ter inúmeras ideias para dedilhar no blog, não fui capaz de utilizar um dos hemisférios do cérebro para escrever aqui e o outro para criar o artigo. Das duas uma: ou os meus miolos funcionam em registo mono, ou o esforço de caligrafia é um processo stereo.

Sexta à noite, depois de ir à Luz ver o Benfica sofrer, a Dina levou-me a jantar na Bica e a um concerto no Lounge. Gosto do Lounge, já não punha lá os pés há imenso tempo. Papel de parede rosa, uma bola de espelhos num canto do tecto, as cadeiras e os sofás em estilo sala de espera de aeroporto, regra geral bom som. E, na última visita, casa cheia para assisitir ao espectáculo.

Tocha-Pestana definem-se como um duo ligeira de música electropimba. «Falha no acorde mas acerta no coração» é o lema dos rapazes. A mim, a sonoridade pareceu-me genial. Qualquer coisa entre o retro-punk, o pop-neon e a música de carrinhos de choque. Na voz, textos e efeitos está o Tocha, na guitarra, beats e hits o Pestana. Ambos com cabelos e roupagem ao melhor estilo Toni Silva, o bigodinho da praxe, a postura cantor romântico. E refrões densos: «Plástico é fantástico», «Pratico a minha fé, eu venho ao Cais Sodré», «Lisboa boa» e lírica do género. Fabuloso concerto. Obrigado, Dina.