23.10.06

King Size

Os primeiros dias de chuva são mágicos. As gotas a fustigarem a janela num domingo à tarde, eu a enrolar-me no cobertor encarnado [roubei-o à minha avó quando ela morreu], tomar o pequeno almoço na varanda, com a paisagem molhada em fundo e o cheiro do café acabado de fazer.

Ainda enrolado no cobertor, dispenso o banho que tomo todos os dias quando acordo e deixo-me ficar no sofá, a ouvir Dizzie Gillespie e a ler um livro sobre reportagens da New Yorker. Anoitece, a chuva não desarma. Levanto-me para tomar o tal duche, a água ferve-me a pele. Quando termino, o Benfica está a ganhar dois a um e ainda lhe falta marcar um golo.

Saio de casa, subo meia América até Roma. Começo a descer a rua com as lojas fechadas viro à esquerda, rumo ao King. Vejo os cartazes e lembro-me que gosto dos filmes da Sofia Coppola, decido assistir ao Marie Antoinette e desço a escadaria do cinema.

A livraria fechou, já não há Assírio&Alvim para me frustar a falta de dinheiro para comprar mais livros. Mas as críticas às exibições presentes continuam penduradas na parede, fotocópias de jornais que entretêm a espera do último cigarro antes da sessão, a última, são dez da noite.

O velho projeccionista ainda lá está, a afagar a projecção sem máculas da película medíocre. Lá fora, vento e chuva, Outono quase inv[f]ernal. Saio, retomo o caminho da minha América, subo ao décimo andar do arranha-céus de peito cheio.

Lembro-me das sessões no King com os meus colegas de faculdade, com a Raquel, com a Vanda e a Célia - vínhamos propositadamente de Sintra para Roma, apanhávamos o comboio que chegava meia hora antes do filme e voltávamos para a estação assim que a sessão terminava.

Ontem tive um domingo gordo, só para mim, e fui ao King. É como se, de alguma forma, tivesse passado a folga em solidão confortável. Eu, a minha cidade e as memórias dos que comigo partilharam o rei de todos os cinemas.

1 comentário:

pinky disse...

grande cinema esse, é quase sempre garantida a qualidade dos filmes que lá passam.
é pena a livraria ter fechado, era um bom sitio de espera, com aquele cheiro a papel e novidades espalhadas.
belo domingo o teu, sempre tiveste coragem de sair de casa....