26.3.07

O dezassete

Nos dias em que há ameaça de chuva sobre a capital mais solarenga da Europa [ou simplesmente nos dias em que estou tão cansado que não me apetece cumprir a pé os 1,8 quilómetros que separam a minha casa da redacção] apanho o autocarro na esquina da América com a Guilhermina Suggia. Evito o 727 para a Picheleira, não me parece um destino digno. O 49 dá uma volta tremenda, demora mais tempo do que qualquer caminhada. Na verdade, só me resta uma opção viável: o dezassete, que desce metade da avenida do Brasil relativamente vazio, vira para a Rio de Janeiro e apanha quatro ou cinco velhotas de chapéu coquete sobre os cabelos arranjados [normalmente pode-se encontrar residualmente estas personagens cinco metros atrás da paragem do autocarro, dispostas pela esplanada da pastelaria Biarritz a beber chá a meio da tarde em bandos de duas ou três velhotas], passa pelo estádio primeiro de Maio, onde entram sempre alguns estudantes das escolas das redondezas [cadernos gastos no final do segundo período, cada vez menos mochilas, canetas no bolso de trás], vira depois para a América, apanha-me a mim e a duas mulheres a dias, uma com alcofa na mão, outra com sacos de plástico, sobe ao Areeiro pela Gago Coutinho, desce a Almirante Reis à cunha com empregados de bancos ou das seguradoras que fecham por volta das três tarde, e detém-se finalmente na Praça do Chile, virado para a Morais Soares, rua multicultural e cosmopolita, com lojas a preços de revenda e clientela das classes operárias.

O motorista do dezassete não era hoje o do costume. Este tinha quinas na mão, que não significam nenhum espírito patriota relevante, apenas o facto de ter estado preso. Quando entrei, ele conversava animadamente com o revisor: «Só espero que tenham percebido a mensagem», comentou o revisor. «As pessoas estão fartas», respondeu o condutor e eu sem perceber o tónico da conversa.

Afastei-me por instantes, não havia lugares livres no autocarro e eu fiquei em frente a duas senhoras que seguramente haviam entrado na paragem frente ao Biarritz, ainda que uma delas não usasse chapéu, antes um alfinete de peito em forma de borboleta presa sobre o lado direito do casaco. «É um escândalo», dizia uma. «Um escândalo», confirmava a outra enquanto procurava na mala de pano um pacote de lenços de papel, tirava um e se assoava sem fazer qualquer barulho. Atrás de mim, duas adolescentes comparavam toques de telemóvel, riam-se muito indiferentes à polémica. Voltei a encaminhar-me para a parte dianteira do dezassete, onde motorista e revisor prosseguiam o tónico animado: «Perdeu-se o respeito e os políticos são uns corruptos. Precisávamos de voltar ao antigamente.» E foi então que percebi tudo. Os telespectadores da RTP escolheram ontem António de Oliveira Salazar como o maior português de sempre e o dezassete seguia em alvoroço pela bizarria do facto.

É lamentável, muito triste mesmo, que um grupo de votantes escolha um pequeno ditador, tacanho e provinciano, como modelo a seguir. Mas é um sério aviso à navegação - as pessoas estão fartas da crise, dos políticos corruptos, das medidas de cosmética, dos salários baixos, deste projecto de Portugal falido. O escândalo não é a conversa do dezassete, nem a escolha de salazar como o maior português. O escândalo é a política de educação deste país.

1 comentário:

Anónimo disse...

O escandalo é um povo que não sabe apreciar a democracia com as suas coisas boas e más! Preferem uma ditadura onde tudo é cinzento e um ditador que toma conta deles e do qual se podem queixar! É melhor isso do que perceber que a democracia tem altos e baixos, e que muitos dos altos são feitos pelos proprios cidadãos através de movimentos que tentam mudar as coisas, e não apenas estar sentado sobre o rabo à espera que o Estado faça! Uma das coisas que mais me espanta é a pessoas falarem do Salazar sempre no singular! Afinal o homem governou sozinho? Então e a "elite" cinzentona que o rodeou durante anos?! Também os querem de volta? Certamente que sim.... O que as pessoas ainda não perceberam foi que o mundo mudou e nisso comentem o mesmo erro que o Salazar! Mas havemos de lá chegar quando passar a fase do deslumbramento! :)