Sábado de inverno, sinto-me senhor quando saio de casa com sobretudo e guarda-chuva. O meu chapéu é daqueles compridos, cabo de madeira e tecido azul escuro, comprado a uma chinesa por cinco euros em dia de temporal. Sábado quase nem choveu, mas eu quis investir-me do meu casaco à Corto Maltese e do tal chapéu, que seguro sempre bem enrolado, pelo meio do cabo, para dar estilo.
Primeiro a Gulbenkian, para ver a lotadíssima exposição do Amadeo. Melhor seguir para o Centro de Arte Moderna e consumir instalações do Cabrita Reis. Mas ou ele me estava a chamar de burro ou de facto não consigo sentir nada a olhar para um molho de tijolos, uma secretária com um bloco de mármore por cima e um conjunto de luzes de cozinha. A arte não deveria ser sensação?
Umas tapas e dois copos de sangria depois, despeço-me dos companheiros de Lisboa e rumo a Sintra. Pouca-terra-pouca-terra e o subúrbio grafitado em espectáculo de janela baça. Próxima estação, saio e dirijo-me ao conforto dos amigos de sempre. Boa janta, bom vinho, livros e filmes na conversa, mais os trabalhos e as deambulações com que queremos presentear o mundo. O contraste entre o frio da serra e calor da conversa é o paralelo perfeito entre os jogos de luz e sombra da serra com luar. Era verão, portanto, mas eu continuava com o meu chapéu de chuva.
Depois o bar da Ana, amiga de há muitos passados, encontrar R&R, umas imperiais com luz ténue, memórias de rituais antigos e um livro lindo que me veio parar às mãos. A edição crítica do Capote em língua inglesa, um ano depois da publicação do "A Sangue Frio", roubado à embaixada americana em Lisboa.
Acabei por ficar a noite toda, com o meu casaco à Corto Maltese, e agora também uma edição crítica sobre o Capote. Acordei e voltei à estação, regresso a Lisboa para noite com amigos urbanos. E, quando começa a chover, apercebo-me que perdi o meu chapéu de chuva azul comprado por cinco euros a uma chinesa na rua, em dia de temporal.
E intimamente calculo que deve haver um sistema transcendental de trocas directas entre chapéus de chuva e emoções fortes. É isso, de certeza.
26.11.06
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
3 comentários:
aiiii a vêr se perco uma meia dúzia de chapéus de chuva!
Beijocas grandes, Bodó.
Té já!
A "metafísica dos costumes" (E. Kant) tem dessas coisas... é costume só darmos o verdadeiro valor às coisas quando as perdemos. Assim acontece com a saúde, com os amigos e com os chapéus de chuva.
Enviar um comentário