3.10.07

O anjo da guarda

Era Maio e eu tinha perdido o meu Moleskine. Numa noite de copos, claro, e à saída da casa de amigos no Princípe Real. Entrei num táxi e encostei a cabeça para trás, as luzes de Lisboa a rodopiarem a média velocidade, zonzo, gozo, giroflé giroflá. Quando cheguei à América paguei os seis euros do costume mas deixei o caderno em cima do banco. Pensei que nunca voltasse a ver o meu Moleskine. Era Maio, início do mês.

No Moleskine escrevo sempre com caneta preta. E isso significa que não estou a escrever para mais ninguém. É só para mim, são páginas de anotações do meu próprio diário, impartilháveis, emoções e desgostos e alegrias e coisas assim.

Setembro, pelo Porto outra vez, e toca o telemóvel: «Olá, o meu nome é José António Castel-Branco e encontrei um caderno seu na rua. Tinha o número de telefone escrito. Não li mais nada. Posso devolvê-lo quando quiser.» Sexta-feira, quando voltar a Lisboa. Às cinco em frente da Brasileira do Chiado, está combinado.

Sexta feira de Setembro, cinco menos cinco, telemóvel a tocar outra vez: «Fala António José Castel-Branco. Já aqui estou em frente à Brasileira. Vai-me reconhecer logo, tenho uma camisa aos quadrados verdes e uma guitarra na mão.» Ok, estou a chegar. E estava.

António José Castel-Branco estava a tocar Let it Be para os clientes da esplanada da Brasileira. Vi-o logo que saí da boca de metro no Chiado, a tal camisa, as calças rasgadas, um boné vermelho da Vodafone na cabeça, a barba mal amanhada e os olhos bondosos. Aproximei-me e esperei que acabasse a música. Depois ele confirmou a minha identidade, abriu o saco da viola e retirou o Moleskine preto, o meu diário de bordo perdido há quatro meses e finalmente reencontrado.

Perguntei-lhe em que raio de geografia se tinha dado tal achamento e ele respondeu que o tinha encontrado num caixote de lixo do Chiado, quando andava à procura de comida. António José Castel-Branco revelou-se sem-abrigo. E boa alma, também.

«Sabe», disse-me ele, «pensei rasgar as páginas escritas e aproveitar o caderno para as minhas canções. Mas depois achei que não se pode roubar a poesia a um poeta.» Então afinal sempre leu o que tinha escrito? «Não.» «Bem, na verdade li um pouquinho.» «Para ser absolutamente sincero devorei tudo. E gostei muito.» Obrigado.

Perguntei-lhe se queria uma cerveja. Não queria. Quer vir lanchar? Não quis. Então vou andando, obrigado por ter devolvido o meu tesouro. Comecei a andar. Quando dobrei a esquina, virei-me para trás e já não o vi, parecia ter-se esfumado Chiado acima.

Abri o caderno para matar saudades de mim mesmo, em registo de palavras sem público. Encontrei lá dentro um poema, com data e assinatura de António José Castel-Branco, rimas sobre Lisboa, a noite e os vagabundos.

Não fosse ter na lista de contactos o número de um sem abrigo com nome fidalgo e telemóvel, e ainda hoje estaria a pensar se não teria sido visitado pelo fantasma de Fernando Pessoa.

2 comentários:

Anónimo disse...

Lindo! O mundo é lindo!

Sara disse...

Impressionante