26.10.06

Rio bravo

Vinham de uma excursão paroquial, ou se calhar de uma daquelas viagens de um dia organizadas pela Junta de Freguesia. Foi há algum tempo, já não me lembro bem. Os meus avós também costumavam frequentar o que chamavam os «passeios». Ir a Badajoz e vir no mesmo dia, com saída às cinco da matina e regresso às tantas da noite. Ou a Vigo. Ou a Fátima.

Eles vinham de Fátima, tinham assistido à missa na capela das aparições, compraram velas e estátuas a comprovar que «em Fátima rezei por ti». Pelos filhos, pelos netos, pelos pais. Também há os que rezaram por «saúdinha é que é preciso», pelas «dores nas cruzes», por «melhoras rápidas». Almoçaram numa cantina que alguém teve a ousadia de apelidar de restaurante, passearam pelas ruas da cidade e combinaram encontrar-se às cinco. Mas só largaram de Fátima às seis da tarde, tiveram que parar numa estação de serviço para avisar – os filhos, os netos, os pais – que iam chegar atrasados. Lá para as nove, talvez.

Às 21h36 chegaram à vila. O largo da Câmara era já ali, passando a ponte.
Nove e trinta e oito, chovia que se fartava. O autocarro começou a atravessar a estrutura velha de pedra e ferro. E de repente o vazio.

Escuro, queda, a água a entrar. Agarra os miúdos, tenta sair daqui, foge. Sabes nadar? A água tem demasiada corrente. Não consigo respirar. Não consigo.

E os corpos arrastados para muito longe, inchados, comida para peixe. Cinquenta e nove mortos, nenhum sobrevivente. Cinco de Março de 2001.

Os seis engenheiros que o Ministério Público acusou de negligência pela queda da Ponte Hintze Ribeiro, em Entre-os-Rios, foram ilibados. Apesar dos avisos do LNEC do mau estado da estrutura e destes terem respondido «isto ainda aguenta».

Há dias em que sinto vergonha de ser português.

24.10.06

Conselho de Anciãos

Há um livro fabuloso de um repórter polaco chamado Riszard Kapuscinki, que passou 30 anos em África a cobrir todas as guerras, conflitos e dramas do continente na altura em que essas guerras, conflitos e dramas estavam no pico da violência. A obra chama-se «Ébano» e deveria ser de leitura obrigatória nos cursos de comunicação social [em vez dos tratados enfadonhos do Paul Ricoeur, que sinceramente nunca me serviram para nada]. Num notável trabalho de minúncia e pormenor, Kapuscinki descontrói a complexa sociedade africana com detalhes deliciosos. Como a casa mais cara da aldeia ser aquela por onde corre uma mínima corrente de ar, como um branco numa povoação negra tem de tolerar ser assaltado, porque é esse o seu papel na comunidade, como um velho é uma personagem que merece respeito, silêncio e atenção profunda - nem que seja para chamar obra dos deuses ruins a um telefone por satélite.

Quando, em qualquer paragem remota de África, se reúne o Conselho de Anciãos, a aldeia permanece em suspenso até que haja uma decisão e, depois, acata a decisão sem nunca a contestar. Os velhos são os sábios, guardiãos da tradição e da magia, analistas das forças da terra.

Ontem, na linha verde do metro, um Conselho de Anciãos ingleses reunia-se na carruagem da frente. Tinham pinta de turistas, seguiam todos sentados, em amena cavaqueira. Até que, na estação dos Anjos, entrou uma grávida muito grávida que pediu para se sentar no lugar de um dos Anciãos ingleses. Incapaz de compreender a língua estranha que ouvia, o Ancião permaneceu imóvel. A grávida muito grávida percebeu a incompreensão e pediu para se sentar mais uma vez, desta feita em língua inglesa. «No way, I arrived first» foi a resposta.
«But your place is reserved for pregnant people, and I wouldn't ask you if I wasn't so tired», ainda contestou a grávida muito grávida, que quase tombava para o chão quando o metro travou bruscamente no Intendente. Mas ficou de pé, sem reposta, e o Ancião inglês virou a cara para o lado [claro que me depois me dirigi ao local e disse ao homem para se levantar imediatamente, com cara enfurecida. Só aí ele acatou a ideia, murmurando frases que não deveriam ser particularmente simpáticas, mas felizmente mantinahm-se incompreensíveis].

Deportamos os Anciãos ingleses para uma aldeia tribal de África durante seis meses ou encerramo-los para o resta da vida na prisão do Tarrafal?

23.10.06

King Size

Os primeiros dias de chuva são mágicos. As gotas a fustigarem a janela num domingo à tarde, eu a enrolar-me no cobertor encarnado [roubei-o à minha avó quando ela morreu], tomar o pequeno almoço na varanda, com a paisagem molhada em fundo e o cheiro do café acabado de fazer.

Ainda enrolado no cobertor, dispenso o banho que tomo todos os dias quando acordo e deixo-me ficar no sofá, a ouvir Dizzie Gillespie e a ler um livro sobre reportagens da New Yorker. Anoitece, a chuva não desarma. Levanto-me para tomar o tal duche, a água ferve-me a pele. Quando termino, o Benfica está a ganhar dois a um e ainda lhe falta marcar um golo.

Saio de casa, subo meia América até Roma. Começo a descer a rua com as lojas fechadas viro à esquerda, rumo ao King. Vejo os cartazes e lembro-me que gosto dos filmes da Sofia Coppola, decido assistir ao Marie Antoinette e desço a escadaria do cinema.

A livraria fechou, já não há Assírio&Alvim para me frustar a falta de dinheiro para comprar mais livros. Mas as críticas às exibições presentes continuam penduradas na parede, fotocópias de jornais que entretêm a espera do último cigarro antes da sessão, a última, são dez da noite.

O velho projeccionista ainda lá está, a afagar a projecção sem máculas da película medíocre. Lá fora, vento e chuva, Outono quase inv[f]ernal. Saio, retomo o caminho da minha América, subo ao décimo andar do arranha-céus de peito cheio.

Lembro-me das sessões no King com os meus colegas de faculdade, com a Raquel, com a Vanda e a Célia - vínhamos propositadamente de Sintra para Roma, apanhávamos o comboio que chegava meia hora antes do filme e voltávamos para a estação assim que a sessão terminava.

Ontem tive um domingo gordo, só para mim, e fui ao King. É como se, de alguma forma, tivesse passado a folga em solidão confortável. Eu, a minha cidade e as memórias dos que comigo partilharam o rei de todos os cinemas.

19.10.06

Lisboa Sound Sistem

Jantar marcado à última da hora com trupe de jornalistas. É curioso, com as mesmas exactas pessoas já se verificaram inúmeras tentativas de jantar, saídas, uns copos – mas acabaram por ser inevitavelmente adiados, anulados, reagendados, apesar de ficar tudo combinado uma semana antes. Ontem, telefonemas com três horas de antecedência e a coisa funcionou na perfeição. Às dez no karaoke chinês.
Já lá tinha ido com a Pats e a sugestão [deveria dizer a culpa] foi dela. Juntaram-se a Lena, o Silvestre e a Cate [uma ode à pontualidade, estes dois últimos]. Pedímos Chao Min de gambas, uns crepes vietnamitas, comemos com talheres. Mas o melhor foi a música de fundo. Numa sala anexa, e com a porta fechada, ouvia-se o canto estridente de uma família chinesa fechada numa sala de karaoke:
«Poing Ton Lááááá
Ling Hua Kaaaa
Ngui Tiiiiinnnn»

Dois dias antes, e como aliás é costume, fui ver o jogo do Benfica ao Lizarran com o Ricardo e o Torcato [melhor nem falar no resultado]. Apanhámos um táxi porque queríamos entrar em estágio [umas cervejas] antes do início da partida. Pois bem, o nosso taxista era uma joia de moço – 60 e tal anos, uma voz serena e o rádio ligado no rosário da Rádio Renascença.
Engoli em seco e não disse nada os primeiros minutos. Mas, na terça-feira, mercê da chuva e da Liga dos Campeões, o trânsito em Lisboa estava caótico. Demorámos uns valentes quinze minutos de «pai nosso que estais no céu» e eu começava a ficar verdadeiramente angustiado «e não nos deixeis cair em tentação», até que acabei por pedir-lhe que ele mudasse o posto «glória ao pai e ao filho e à porra do espírtito santo». O taxista, no entanto, «cheia de graça, senhor é convosco», recusou o pedido porque depois não sabia sintonizar de novo o rádio em tão religiosa estação «como era no princípio, agora e sempre». Pedi para sair do carro. «Amén».

Quão insana pode ser a banda sonora de Lisboa? Karaoke chinês para jantar, o rosário para uma viagem de táxi, já estou à espera que um destes dias me ofereçam Tony Carreira na estação de metro. Adiante, que em minha casa mando eu. Logo, quando estiver a preparar o jantar, vou deixar o Chet Baker ecoar na sala e limpar a alma sonora à cidade.

16.10.06

Sabor a mento

São onze e meia da noite e as 32 cadeiras do Restaurante São Cristovão (na rua com o mesmo nome, Mouraria, Lisboa) estão todas ocupadas. Um dos comensais já tinha cantado o fado, ouviram-se várias mornas de Cabo Verde e Bob Marley também passou por ali, dedilhado nos dedos de Batcha, guitarrista de serviço. De repente, uma mulher aproxima-se limpando as mãos ao avental, sorriso de poucos dentes mas de uma sinceridade desconcertante. E começa a cantar em crioulo: «Mundu, bô ten roladu ku mi num jogu di kabra-séga, sempri ta persigi-m.»
Ela é Mento, ou Maria do Livramento Levy, cabo-verdiana de 56 anos, neta de um judeu, dona do São Cristovão. Abriu as portas do estabelecimento há 27 anos, renovou-o há poucas semanas. No meio do empedrado da Mouraria, criou um espaço para a África Lusófona, com pratos de todas as antigas colónias portuguesas e música do arquipélago onde nasceu. «A nossa clientela tem um terço de portugueses, um terço de africanos e outro terço de turistas estrangeiros. E voltam sempre», solta com uma gargalhada – deliciosa como catchupa.
Mento nasceu na Praia, ilha de Santiago, e aos 19 anos embarcou para Lisboa. «Vim pela aventura, comecei a trabalhar como doméstica. Nessa altura a vida era mais afectuosa, hoje as pessoas estão mais frias, mais stressadas. Aqui não deixamos entrar stress.» Fez do restaurante a sua casa, sala de visitas onde reserva sempre uma mesa para os amigos que chegam sem aviso. O resto é ao estilo de Mento. Beijos e abraços para toda a gente, comida de África, (muitos) copos de grogue e a música das ilhas – nem sempre afinada, mas sempre emocionada.

12.10.06

Apito dourado

Está certo que já não vivo no Principe Real. Tenho saudades, é um facto, e há dias soube-me bem ir lá jantar a casa do J, que também foi a minha casa durante uns meses. O tempo estava simpático e decidi guiar-me a pé pela cidade. Atravessei a avenida de Roma com tempo para observar as lojas e o glamour seventies desse eixo. Velhas coquetes com cães coquetes, betos com penteados betos, mulheres de unhas arranjadas, alfinetes de peito, lenços no pescoço. Um espectáculo para os olhos, pelo menos para os olhos de um outsider.

Subi ao Saldanha, para ver a cidade empresarial com pressa de ir para casa. Homens de fato e gravata, mulheres com saia e casaco, crianças saídas da creche, algumas com bibe, outras com roupa civil e mãos pintadas de caneta de feltro. Desci a Fontes Pereira de Melo, rumo ao Marquês. Reparei no edifício da Tudor que anda a deixar a D louca. Palacete de época prestes a cair aos pedaços, um luxo para os olhos.

Subi da Liberdade directamente para o Príncipe Real, passando a cinemateca e contornando o hotel Altis. No cruzamento da rua da Escola Politécnica com a rua do Arco do Carvalhal costuma estar um polícia sinaleiro a mandar os carros avançar e travar, a fingir que regula o trânsito. Parece que dança com os braços, com as pernas, com o rotdopio de direcções. Lá estava ele.

Esperei junto à passadeira para atravessar e ele apitou para toda a gente parar e deu prioridade ao peão [moi-mêmme]. Quando estava a chegar à outra margem do alcatrão, ouvi outro apito. Virei-me para trás e o polícia estava a olhar para mim. Cumprimentou-me puxando a pala do chapéu para baixo e disse «boa-tarde, como está». Respondi à altura, apesar do espanto. «Bem, obrigado». O tipo do apito dourado tinha-me reconhecido. Após cinco meses a passar diariamente por ele, a atravessar a estrada na passadeira dele, cumprimentou-me como se fossemos velhos conhecidos, vizinhos de bairro, coisa que o valha.

Lisboa é uma cidade tremenda. Do seu ensaio cosmopolita passa facilmente à condição de proximidade. Posso viver nos Estados Unidos, na avenida dos Estados Unidos, mas o polícia do meu bairro é o tipo do apito dourado.

9.10.06

Praça dos sonhos

Rossio, sábado à tarde.

Da esquina da Havaneza há muito que desapareceu o velhote que andava embrulhado numa bandeira do PSD a vender salvação divina com um megafone. Lembro-me que ele gritava «Cristo é pai, Cristo é o caminho» muito antes de terem aparecido em Portugal os cristianismos proféticos da IURD e da Igreja Maná. Foi o primeiro profeta que alguma vez vi e o que mais me impressionou. Agora, no lugar dele está uma mulher com uma banca arrumada numa bandeira do PSD, a vender sonhos sem megafone, livros de auto-ajuda religiosa emoldurados com bandeiras de Portugal.

Adiante, em direcção à rua do Carmo, o vendedor de castanhas de sempre. A dúzia anda cara, há sempre duas ou três castanhas estragadas, mas ele insiste em vender o sonho de um Outono desejado, sem perceber que Lisboa tem saudades do Verão. Na esquina seguinte, o Dona Maria II, sonho nunca concretizado de um verdadeiro teatro nacional. Portas fechadas, mundo privado, distante de todos. Um monumento ao querer ser, à utopia de palco do mundo. Vazio de plateia. Triste como o fado [Venham os actores para a rua, buscar público para dentro da sala].

Na Pastelaria Suíça sonha-se com o charme da Lisboa chic. Homens de todas as cores, mulheres de todas as línguas, Expressos e Sóis a concentrar-lhes o esgar. À noite, em frente à Suíça, há desfile de corpos para vender, mulheres que oferecem carícias, sonhos desvanecidos de prazeres de Outono. Mas agora, que há luz, o Rossio quase parece o coração de uma cidade verdadeiramente cosmopolita.

Mas a Valentim de Carvalho fechou, as multinacionais de salada ocuparam o espaço das chapelarias, as castanhas andam estragadas e o profeta do Rossio morreu. Sonhos perdidos.

Nisto, duas brasileiras passam por mim e comentam uma para a outra:
«Lisboa não tem loja de fantasia.»

Pois não, penso. Os sonhos já não se vendem.

4.10.06

Calvin & Hobbes

O prédio ao lado está em obras. Limpeza de fachada, retoques de pintura, nada que incomode. Já anda assim há pelo menos dois meses, desde que me mudei para os States. Os mesmos dois tipos a acartarem baldes ao som de um transistor parecido com o que a minha mulher a dias usava em casa da minha mãe. Chamava-se Jaca, Joaquina, minhota com muitos anos de Andorra, mulher dura, ralhava connosco até que a levantávamos pelo colo e ela batia-nos a dizer «deslargue-me».
Era sobretudo o meu irmão mais novo quem lhe pegava ao colo. Eu só mandava bocas, às vezes dançava com ela ao som do transistor velho, cinzento, sintonizado nas minhas iniciais [RR]. Não sei porquê, mas quando chegava a casa depois da faculdade, a Jaca costumava estar sempre a limpar o tapete do hall de entrada. A velhota de rabo para o ar, pernas quase estendidas, mãos na carpete. Eu entrava e dizia qualquer coisa digna como um «eh lá, temos festa!» Ela respondia-me menino tenha respeito. Às vezes contestava-a com uma palmada na anca, depois tinha que fugir, ela agarrava numa colher de pau e perseguia-me casa fora. Cenas de violência doméstica.
O transistor da Jaquina debitava horas após horas o jogo da mala, a missa de fim de tarde, a voz do António Sala. E hoje, o transistor dos pedreiros do prédio ao lado entoava Gloria Estefan [!], enquanto os homens trabalhavam.

Foi pouco depois de lhes ter atirado os bons dias que reparei que um deles tinha uma T-shirt da Calvin Klein e o outro usava uma camisa de manga curta, padrão tigresa. Imagem hilariante, duas fashion victims das obras, um Calvin, outro Hobbes. Que imagem tão estranha para começar o dia.

3.10.06

Crónicas de elevador

Vivo nos Estados Unidos. Num décimo andar da Avenida dos Estados Unidos, com vistas largas sobre Lisboa. Um T1 com varanda, antiga casa de porteira convertido em palácio pequeno, mas pleno de estilo. Tem uma parede de vidro, um armário enorme, quatro paredes de tijolo embutido, um poster original de arte de propaganda vietnamita. É assim que eu vivo na América.

O elevador do meu prédio é antigo, anos quarenta, uma porta de abrir e outra de correr, daquelas metálicas. A subida é lenta, vagarosa, e a luz interior só dura um andar e meio. Todos os dias, subo e desço para o topo do mundo como Ulisses, que passou por todas as trevas até concluir a sua Odisseia. Também eu fico calado no escuro, às vezes acendo o isqueiro para afastar fantasmas, até que por fim chego ao décimo piso, rodo a chave de casa e percebo o meu privilégio de arranha-céus. Aqui no alto, Olimpo privado, Lisboa corre de outra forma.

Gente feita carreiro de formigas, automóveis tornados besouros barulhentos, casario que à noite é enxame de pirilampos.

O elevador é um portal que me leva do centro da urbe para o Jardim Zoológico. Bem-vindos à minha janela. Bem-vindos ao laboratório.