25.3.09

O herói do 17

Ai, ai, ai. Eu de manhã não tenho paciência, pelo menos tenho pouca. A Célia, o Gouvas, a Rache, o Guido ou o Dave sabem isso há quase 20 anos. Os meus amigos mais antigos chamavam-me A Besta da alvorada. Só à tarde eu voltava a ser o Riki. Quando acampávamos e algum deles me acordava antes de uma hora que me parecia minimamente razoável, não era pouco frequente eu atirar-lhes um grunhido ou uma bota. Há vinte, há quinze, há dez anos, era A Besta das manhãs. Agora, definitivamente, sou um herói.
Nove da manhã e o despertador retine furiosamente na minha cabeça. Tento fazer uns abdominais para começar o dia - desisto aos 100. Levanto-me, faço a barba, preparo o pequeno almoço e tomo um duche rápido de água fria, porque o esquentador avariou. Esqueço-me de levar o iPod, pelo menos podia disfarçar com soul a alma cinzenta das dez e pouco. Decido-me pela preguiça, melhor apanhar o 17 em vez de ir a pé. Espero cinco minutos e entro no veículo amarelo. Não pago bilhete.
O autocarro está relativamente vazio. Nos lugares reservados às grávidas, idosos e deficientes segue um velhote africano, septuagenário pelo menos, de muletas. Ao lado, nos bancos individuais, duas senhoras coquettes de Alvalade. Atrás, um rapaz dos seus oito anos, pele negra, mochila às costas. E, nos bancos da esquerda, duas mulheres dos seus cinquenta e poucos, que falam alto de mais.
Uma tem óculos de fundo de garrafa, saia com pregas, tornozelos inchados. A outra tem o cabelo oxigenado, brincos à Lola, calças brancas muito justas que lhe caem mal nas ancas disformes. É essa que vai liderando o discurso. E fala assim: «Esta pretalhada e esta ciganada deviam ir prá terra deles. Não vê que eles são muito mais unidos do que os brancos, protegem-se uns aos outros. Eles organizam-nos para nos chatear, é o que é.»
O velho das muletas vira-se para trás com um olhar magoado. O miúdo negro encolhe-se no banco, cheio de vergonha. As senhoras coquettes não conseguem disfarçar o incómodo. Passa a primeira paragem e o discurso da loira oxigenada prossegue inalterado. «Porque os pretos são uma raça que não interessa a ninguém, mas olhe que os ciganos ainda são piores.» A voz é audível em todo o autocarro e ninguém tem oportunidade de não ouvir. Sinto o peito a tremer e, pouco antes da segunda paragem (eu saio à terceira), rebento:
- A senhora desculpe, mas podia falar um pouco mais baixo. Ou então calar-se de vez, é que a sua conversa está-me a incomodar e eu não tenho de a ouvir.
Ela fita-me e, a princípio, sente-se apanhada de surpresa. Mas depois levanta a sobrancelha, põe um ar de mulher das barracas e a mão na anca:
- Ai é? Doi-lhe os ouvidos, é? Doi-lhe os ouvidos?
- Não, não me doem os ouvidos minha senhora. Mas a senhora está a ter uma conversa racista e isso é um crime público. Sabe que eu posso chamar a polícia e a senhora ser detida pelo tipo de conversa que está a ter.
Ela olha para a amiga e grita com um ar trocista:
- Olha, olha, temos doutor! este deve ter a mania que é esperto. Ainda por cima com este ar de xunga. Mas quem é que ele pensa que é para me mandar calar?
Até à terceira paragem, a que eu saio, a mulher vai destilando veneno contra mim. Eu já não a oiço, mas fico contente pelo alvo da sua conversa pavorosa passar a ser eu e não as questões de raça.
Chega a paragem do Areeiro. Preparo-me para sair e o motorista chama-me e faz um sinal com o polegar levantado. O velhote das muletas sai antes de mim, quando passo por ele ele agarra-me o braço e diz: «Muito obrigado, senhor. Eu estava a sentir-me muito mal e o senhor parou com aquela conversa. Muito obrigado.» As velhotas coquettes, que também saíram no Areeiro, acercam-se e dão-me uma palmadinha nas costas: «O senhor esteve muito bem.» E eu acabei por ficar bem-disposto logo pela manhã. Já não sou uma besta, agora sou um herói.

6 comentários:

Rodric disse...

Sem muito tempo para deixar um dos meus habituais comentários, não podia deixar de te chamar um grnade cabrão por me fazeres isto constantemente, escreves estas coisas que me deixam orgulhoso de te ter como amigo, e depois ainda apelas ao sentimento, estando eu no trabalho; local onde não cai nada bem andar de lágrima no canto do olho eheheh aproveito o teu post para te dizer algo que diria na mesma no momento em que te encontrasse de novo - vai ver o gran torino, além de uma lição de cinema do titio clint um grande argumento adequadíssimo a este planeta global no qual vivemos ou um retrato do american melting pot como ouvi alguém lhe chamar. abraço grande besta heróica , és huuggee como o nosso benfica, mas não como mais pastéis de belém ao pé de ti ehehhehe

catarina disse...

aproveitando a deixa do "gran torino", lembro que também está em exibição o filme "che - guerrilha" e recordo as palavras enviadas por este a María Rosario Guevara, há cerca de 45 anos atrás, as quais, penso, assentam-te que nem uma luva:
"...si usted es capaz de temblar de indignación cada vez que se comete una injusticia en el mundo, somos compañeros, que es más importante."

Florbela Marante disse...

Quando se está de caras com o mundo puto e caralhesco não se pode ignorar

E eles, o motorista que também viu e ouviu: limitou-se a fazer um sinal com o dedo polgar levantado;
o velhote das muletas que também viu e ouviu: limitou-se a agarrar no braço;
as velhotas coquettes que também viram e ouviram: deram uma palmadinha nas costas....

Gritemos Brecht

"Primeiro levaram os comunistas,
Mas eu não me importei
Porque não era nada comigo.

Em seguida levaram alguns operários,
Mas a mim não me afectou
Porque eu não sou operário.

Depois prenderam os sindicalistas,
Mas eu não me incomodei
Porque nunca fui sindicalista.

Logo a seguir chegou a vez
De alguns padres, mas como
Nunca fui religioso, também não liguei."

Florbela Marante disse...

falta o resto do Brecht

"Agora levaram-me a mim
E quando percebi,
Já era tarde."

Anónimo disse...

Se há coisas que eu ODEIO são gajos que não têm a coragem para serem heróis. abç T.

Telescópio disse...

Gritemos Brecht, Guevara e todos os outros inconformados do mundo. Obrigado pelos vossos comentários.